O triunfo da lorota

Eles sempre existiram, e imagino que ao longo do tempo tenham cumprido um papel social relevante. Reunidos em torno de fogueiras noturnas, nossos ancestrais mais remotos devem ter se divertido com suas histórias, tentando adivinhar no quanto disso era possível acreditar.
Penso até que esses primeiros mentirosos foram os precursores dos modernos romancistas, porque a seu modo davam tratamento à ficção. Mas o advento da literatura não acabou com eles, que continuaram a exercer seu ofício como artistas populares, dando trato de oralidade a histórias da carochinha.
Cultivam vários gêneros, geralmente inócuos, destinados apenas a dar prazer aos ouvintes. Há também os não tão bem vistos, mas de inegável sucesso, que se dedicam a espalhar boatos, verdades exageradas ou até mentiras deslavadas. E não falo do telefone sem fio, aquela prática pela qual, seja pelo gosto de acrescentar, seja pela incompreensão do ouvido, a notícia cambia com a circulação: falo mesmo daqueles que de caso pensado já criam a informação distorcida.
De algum modo, todos temos um quê de mentiroso, e mentirosos há em todo lugar. Muitas vezes, a mentira se aloja até onde menos se poderia esperar, como em algumas redações jornalísticas.
Ultimamente, tenho pensado que, entre tantos efeitos colaterais da internet, está também o de ter potencializado a ação dos mentirosos. E, como tudo na internet se apresenta em nova roupagem, também os mentirosos cibernéticos apresentam novos estilos e criam um novo público.
Não falo das já insuportáveis calúnias políticas, que circulam no nosso dia a dia, embora tenham em comum esse mesmo público; falo mais das lendas urbanas, das histórias edificantes, das frases tolas atribuídas a famosos.
Claro, tudo isso já existia antes da internet. É antiga, por exemplo, a história da menina que morreu mordida por cobra escondida em alface do supermercado chique.
Mas há diferenças significativas, e uma é muito óbvia: a circulação potencializada. Além disso, se não há autor para a história da cobra – e nunca se saberá se surgiu como telefone sem fio –, as histórias da internet já nascem prontas, mesmo naqueles casos em que não fica bom para o autor tornar-se conhecido.
Outra característica é a de que vêm autenticadas: o cão que salvou o bebê recém nascido do lixo é fotografado levando-o na boca e junto com essas fotografias está a criança já vestida nas mãos de quem a salvou. Nenhuma foto é montagem e cada uma corresponde a um pedaço de diferentes histórias, que, somadas, viram uma grande mentira.
Mas, sedentos que estamos por louvar a bondade animal neste mundo degradado – o cão faz as vezes de bom selvagem –, ficamos cegos a esse desprezível detalhe, que é saber se a história é verdadeira, e louvamos o animal, nos surpreendemos com o inusitado instinto materno, não reconhecido nos animais objetificados, e viralizamos a história, como quem acabou de se maravilhar com a aparição do papai noel.
É interessante observar que as pessoas que assim se extasiam não costumam perceber detalhes sórdidos, como o de que bem antes de alguém pensar em socorrer a criança trazida pelo cão terem sido tiradas fotos de todos os ângulos possíveis. Isso até seria coerente com a ideia de louvar o animal, mas retiraria a magia do momento e desqualificaria o autor da notícia, o que evidentemente não pode.
Não descobri ainda o que move esses novos mentirosos que fazem tanto sucesso na internet: será só o prazer de ver suas belas histórias circularem com a rapidez de um rastilho de pólvora ou isso virou uma atividade profissional bem remunerada? Em qualquer das hipóteses, a conclusão é a de que se dão muito bem, porque há um público, formado de pessoas de todos os sexos, classes sociais e graus de instrução, pronto para ler, curtir, emocionar-se e compartilhar.
É ruim? Pois é nisso que tenho pensado. Em outro compartilhamento, ilustrava-se um amor duradouro, ele com rosto nipônico, ela de uma brancura escandinava, em duas fotos em frente a uma rocha molhada pela espuma do mar: a primeira, de 1965, em preto e branco, de quando eram jovens, e a outra colorida de 2015, já um casal maduro. Comentei com o amigo que a compartilhou a coincidência de por 50 anos terem permanecido iguais os tufos de capim em torno da pedra, e ele me censurou por querer estragar o romantismo da mensagem. Ser inventada era mero detalhe e revelar a farsa um gesto antipático.
Talvez seja isso: não interessa que o cão não tenha salvado a criança do lixo, não interessa que a foto de 1965 tenha sido tirada no mesmo dia da de 2015, não interessa que Borges nunca tenha escrito aquela poesia; o que interessa é a aura que se cria em torno da história – dizê-la de mau gosto já é implicância dos chatos.
Pois me pego pensando como um mal humorado intolerante e quase me sinto culpado.
Mas me recobro e penso: é bom que tantos adultos acreditem no papai noel? É bom que tomemos como verdadeiro tudo o que circula por aí? E aí penso que não.
Essa legião de adultos infantilizados sempre pronta a cair na primeira bela empulhação que se lhes apresenta é o outro produto da internet. E é a mesma que acredita nas empulhações de coisas bem mais sérias do que essas de que falei.
Mas isso é muito sério para o que eu queria dizer. O que queria era dizer que já não se faz mais mentira como antigamente: os mentirosos de antes nos divertiam, os de hoje nos enrolam.
É o triunfo da lorota!

A ilustração é de um famoso mentiroso de antigamente, o Barão de Münschhausen.
Quem quiser saber mais sobre a história do cachorro, pode ler aqui, num dos vários saites que se especializaram em desmascarar lendas urbanas. Outro saite esclarece a foto com o bebê na mão de policiais.


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