Algumas delas aconteceram e outras são inventadas. Mas é como se fossem de verdade. Foi assim que apresentei minhas historinhas aos pequenos leitores. Entre as que aconteceram está a história de Nicole, a menina de cadeira de rodas que mora lá no fim do morro, junto à pedreira. A história aconteceu assim mesmo, e até mesmo os quatro mil reais pagos pela avó na aquisição do casebre são verdadeiros. Só o nome dela não é Nicole, porque não me senti autorizado a dizer seu nome verdadeiro.
Ah, e tem mais uma coisa que ficou por minha conta. Perversamente, atribuí a ela um desejo irrealizável: ser médica. Se digo perversamente, faço-o pensando naquela menina, porque lhe atribuo um desejo que fatalmente a levaria à frustração. Claro, a função que atribuí ao escrito nada tem de perverso: é uma provocação ao leitor, e pode significar o direito de sonhar, a opção de uma criança que teve os movimentos tolhidos por uma profissão que busca a cura, ou mesmo uma provocação aos leitores, pequenos e grandes, para que pensem sobre os sonhos cuja realização é negada a quem nasceu pobre.
Eu havia escrito a história de Nicole antes mesmo de pensar nas historinhas, e algumas pessoas que a leram e souberam da ideia de publicar o livrinho me aconselharam a não incluí-la, argumentando que a crueza e tristeza nela contidas a tornavam inadequada para crianças.
Resisti, adaptei o texto e o publiquei. Além das modificações de estilo, alterei a parte que inventei: o sonho que dei a Nicole. No texto original, ela desejava ser professora, profissão tão nobre quanto a medicina, opção que igualmente enfatizava o amor pela humanidade e era mais factível, porque até quem é da periferia, e ainda que em cadeira de rodas, pode, com muito esforço e sob condições adversas, almejar essa profissão, de resto hoje indesejada pela classe média, dada a baixa remuneração. Troquei pela medicina não por perversidade, mas para causar no leitor esse impacto que faz pensar.
Lembrei disso tudo agora, depois que escrevi Escolher o crime, quando minha irmã Joana, professora, comentou: Lendo teu texto, logo lembrei dos meus alunos da Vila Cruzeiro, que ficavam durante a madrugada cuidando carros para ganhar um troquinho, muitas vezes no frio e na chuva. Ao amanhecer se dirigiam até a escola para ganhar um lanche, e o sono não permitia que aprendessem algo. A maioria deles não sabia quem era seu pai. Por onde será que andam?
Então penso: assim como eu inventei que Nicole quer ser médica, Joana podia ter inventado profissões para seus alunos da Vila Cruzeiro: juiz, engenheiro, empresário, gerente de banco. Que futuro risonho podemos inventar para quem não tem futuro!
–
Esta foto é de Zé Brito e a utilizei em Sinal fechado.
Deixe uma resposta