O outro lado

Houve época em que se dizia que todo brasileiro é técnico de futebol. Hoje, por conta dos nossos fracassos futebolísticos parece que o número de técnicos reduziu sensivelmente, embora ainda os haja aqui ou ali. Agora há outras profissões mais praticadas. Médicos, por exemplo: quase todos entendemos hoje de medicina. Também ocupamos funções públicas, seja de governo, quando temos as melhores receitas para qualquer política, ao contrário de quem está no poder, que, estranhamente, toma sempre as decisões equivocadas; seja como juiz, e temos a capacidade de julgar nas redes sociais muito mais rápido e melhor do que faz o próprio Judiciário. Claro, não temos os autos dos processos, mas para que autos, se a imprensa nos informa tão bem?

Deixando de lado a ironia, acredito que isso seja salutar. O período áureo dos técnicos de futebol foi a ditadura militar, época em que, é certo, tínhamos o escrete de ouro que nos animava, mas também não nos era dado o direito de discutir política. Então, se hoje nos envolvemos nas grandes discussões, isso é um avanço que só a democracia possibilita.

E as redes sociais são um veículo que potencializou os debates, os tornou instantâneos e nos permitiu a todos darmos publicamente nossa opinião, que em alguns casos chega mesmo a se multiplicar num ritmo quase alucinante. É um espaço democrático por excelência. Também é, até em razão dessa instantaneidade, um lugar em que as paixões se potencializam, no qual é dada vazão ao julgamento fácil, sem falar de que é também espaço de manifestação e florescimento dos preconceitos e ódios de todo tipo.

Mas não é dos ódios que quero falar, e sim da nossa facilidade em tomar posições quase instantaneamente, só a partir de algumas impressões iniciais e com as raras informações existentes, muitas vezes manipuladas. Tomo como exemplo novamente o caso da Uber, porque nesse caso achei espantoso como de uma hora para outra se formou tal onda em defesa desse serviço limpo, eficiente e barato, contra o atraso representado pelos táxis tradicionais, sujos, caros, com motoristas mal educados e muitas vezes desonestos.

Aliás, vi na capa de uma revista semanal, que não assino mas é facilmente encontrável na sala de espera de consultórios médicos e odontológicos, a chamada para uma matéria que tratava de um tal Índice Uber, que daria a medida do grau de corrupção dos países: os que resistem a sua implantação seriam corruptos; os que o adotam sem resistência seriam virtuosos. Esse parecia ser o clima após a proibição temporária da implantação da Uber em Porto Alegre (também em outras cidades): na eterna luta do bem contra o mal, neste momento o bem vestia a camiseta da Uber.

As redes sociais têm esse efeito colateral: ao mesmo tempo em que criaram um excelente canal de debate, permitiram os alinhamentos instantâneos e irrefletidos, em que saímos à luta com informações mínimas, geralmente ao lado de que já conquistou um número suficiente de adeptos que nos leve a considerar errado se opor a tantas pessoas.

Não é o alinhamento próprio do juiz, porque o ato de julgar impõe ver o outro lado. Sob esse aspecto, essas ondas das redes sociais se assemelham muito mais a movimentos partidários, com adesão ao partido majoritário; no exemplo mencionado, a Uber. Mas, como na rede social nós processamos, julgamos e executamos, ali somos também juízes, sem a obrigação da postura crítica que permite ao Judiciário ser contramajoritário, ao considerar errada aquela tese tão aclamada.

O problema é que os juízes em sentido estrito, esses que julgam por ofício, também estão nas redes sociais, e participam desse jogo, no qual evidentemente se despem da sua condição profissional – assim não fosse, nem aos menos lhes seria lícito estarem aí.

A pergunta é: para quem em um momento se permite aderir aos alinhamentos para os quais o julgamento dispensa ver o outro lado, é possível ainda vê-lo crítico no exercício de sua função? Tomo um exemplo extremo e pergunto: quem se posiciona politicamente em período eleitoral pode ser juiz eleitoral?

Mas a minha pergunta pode ser posta de modo mais genérico, quase como uma questão epistemológica: quem no dia a dia se habitua a não ver o outro lado consegue ainda vê-lo num processo? Será que não nos contaminamos com esse espírito do julgamento rápido e superficial, e este se torna o novo modo de decidir?

Evidentemente, não cogito da ideia de que as redes sociais nos transformaram em outra pessoa, pior da que éramos, que antes éramos justos e analisávamos bem os processos e agora já não o fazemos. Nem antes éramos tão bons, nem agora somos tão ruins, mas a questão que discuto é a maior exposição a um debate passionalizado, que interfere na capacidade de julgamento crítico, justamente porque nos acostuma a não nos preocupar com ver o outro lado. Estamos, mesmo quando dele não participamos, diretamente expostos ao clamor popular, e isso cobra uma vigilância muito maior.

Por outro lado, é importante ter claro que as redes sociais não criaram uma nova classificação, os que estão e os que não estão nelas; pelo contrário, seu estilo se espraia, de modo que somos todos sempre interpelados a nos posicionarmos a partir de informações mínimas e não submetidas à apreciação do outro lado. Trata-se de um fenômeno planetário, da comunicação instantânea, na qual somos emissores e receptores, que impôs uma nova cultura, ainda não sedimentada.

Desse modo, estamos todos, desde o juiz de entrância inicial até o ministro do STF, submetidos à mesma pressão, mesmo que estes, por sua experiência, formação e atribuição – e até porque acredito que não estejam nas redes sociais –, possam estar melhor vacinados.

Vacinados, mas não imunes, e por isso achei tão significativo e preocupante ler, em texto de cuja autoria esqueci, mas que mencionava recente julgamento do STF, que os ministros decidiram com o fígado.

Por isso, é fundamental vermos o outro lado, olharmos para a tese adversa, ou para os muitos lados, consideradas as múltiplas visões possíveis de um mesmo fato ou as interpretações mais prudentes da lei. Para que continuemos a decidir com a cabeça e nunca o façamos com o fígado ou qualquer outro membro.

Escrevi sobre a Uber aqui. A foto, intitulada “O outro lado”, é de 1955, de autoria de Marcelo Gautherot. Retirei de matéria do Estadão.

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