Propus, e meu colega Adair Philippsen, de Augusto Pestana, topou: faríamos uma oficina de sentença para funcionários e estagiários do Fórum.
Os estagiários eram todos da Unijuí, e levamos a proposta à direção da Faculdade de Direito: a oficina seria uma atividade de extensão, aberta também a alunos que não estagiavam; o Adair e eu nada cobraríamos da Unijuí e ela não cobraria dos alunos, entrando apenas com o espaço da sala de aula e o certificado ao final. A Unijuí também topou.
Assim, por meses, fomos, nós dois e os 40 participantes da oficina, donos do campus deserto das manhãs de sábado.
Lembrei agora, porque, naquela necessária, mas pesarosa, atividade de eliminar papéis velhos, me deparei com uma pasta de arquivo morto etiquetada como oficina de sentença. Abri. Quase só xerox de sentenças ou de autos de processos, utilizados naquela atividade, que de resto não necessitou de material didático. Foi tudo para a reciclagem, mas resgatei uma folha.
Acho que foi na primeira aula que dei três textos aos alunos. Um foi de decisão minha de concessão de liberdade provisória, que deve estar perdida em algum disquete – estando em disquete, está mesmo perdida.
O segundo texto foi a arenga aos magistrados, que já publiquei aqui (até hoje, o único dos textos deste blog que tomei emprestado). O terceiro era o da folha que resgatei.
É um texto sempre atual, mas o achei ainda mais atual agora, quando tantos gritam por mais prisões. E publicá-lo num 7 de setembro é simbólico, porque trata de um brasileiro neste nosso Brasil.
Inicia dizendo “dezenove anos atrás”, e me dou conta agora de que outros dezenove anos passaram desde que escrito (nem sempre o tempo é o melhor dos remédios). É de Márcio Sotelo Felippe, na época Procurador-Geral do Estado de São Paulo, que agora descubro meu amigo no Facebook. Foi publicado em 1998 num boletim da Associação dos Juízes para a Democracia, que então enviava suas publicações a todos os juízes.
O título é Ladrão de Bicicleta e o texto é este:
Dezenove anos atrás, outubro de 1978, um brasileiro começou a conhecer melhor o seu país. No dia 2 daquele longínquo mês, havia pouco o Brasil perdera a Copa do Mundo da Argentina, Figueiredo, o que preferia cavalos, cavalgava no cerrado, Prestes ainda morava em Moscou e um monte de brasileiros jovens estava fora porque pegara em armas para derrubar a ditadura militar, e a gente queria anistia. Aquele brasileiro não sabia nada destas coisas, não só porque era pobre e mal informado, mas também porque sua cabeça não era lá muito boa. Uma coisa que ele logo percebeu é que havia um livro chamado Código Penal, que é a única lei eficaz no país para brasileiros como ele, pobres e doentes. O Código Civil não vem ao caso, porque ele não era proprietário de coisa alguma, a não ser das bagatelas dos pobres, não era possuidor, não tinha direitos reais. De vez em quando figurava em um dos papéis do Código Civil, o de devedor, mas no país em que gente como ele vive essas coisas não se resolvem pelo Código Civil. A Constituição, mesmo aquela ruinzinha da ditadura, tinha um capítulo sobre direitos e garantias do cidadão. Ele provavelmente não tinha muita noção disto, mas de qualquer modo logo começou a perceber que a sua Constituição era mesmo o Código Penal. E não o Código Penal de verdade, o do mestre Hungria, belo, claro, preciso na linguagem, pleno de técnica jurídica; o dele era o da vida real, produto do descaso, da negligência, da omissão com que se trata as coisas quando as pessoas em jogo são brasileiros pobres e doentes como ele.
O que aconteceu foi que esse brasileiro furtou uma bicicleta Monark. Como se constatou depois, e como já adiantei acima, ele era inimputável. Foi preso em 2 de outubro de 1978, condenado a um ano de reclusão. Em 1981 a segunda instância absolveu-o, mas impôs-lhe medida de segurança, por força da qual ficou sob custódia do Estado até 1997 no manicômio judiciário. Detalhe: quando do julgamento do Tribunal seu “crime” estava prescrito, razão pela qual não cabia medida de segurança. Como esse pequeno detalhe passou despercebido durante dezesseis anos, ele ficou depositado num manicômio, periodicamente avaliado como perigoso para a sociedade, provavelmente por causa da sua compulsão incontrolável por bicicletas Monark, e pela terrível ameaça que isto representa ao direito de propriedade.
Desde 1978 este brasileiro vem aprendendo muitas coisas sobre o país em que vive. Se eu lhe explicasse umas outras, ele certamente diria que eu é que sou meio zureta. Por exemplo, se alguém toma para si uma bicicleta Monark, acontece o que aconteceu com ele: quase vinte anos internado em um manicômio, embora a lei dissesse que ele deveria ir para casa. Mas, se alguém toma para si uma quantidade equivalente a, digamos, cinquenta milhões de bicicletas Monark, o governo paga e o sujeito não fica nem um dia na prisão ou no manicômio judiciário. Ele, que tem problemas mentais, não seria capaz mesmo de compreender isto; mas nós, que somos normais, entendemos perfeitamente.
É pensando nessas coisas que se entende o que Hegel quis dizer com “o real é racional e o racional é real”. Porque escrevo esta pequena crônica do Judiciário e de sua máquina perversa e vou sendo tomado pela sensação de irrealidade; acho que deliro, vejo aqui ao meu lado Jean Valjean conversando com Beccaria. Hegel entra pela sala falando solenemente do triunfo da Razão, pedalando uma Monark e levando o ladrão de bicicleta na garupa; de repente tudo desaparece, a bicicleta surge novamente, mas agora o brasileiro que a furtou estende os braços ao longo do guidão, como um Cristo crucificado, seguido por um soldado romano que lê um laudo médico atestando a periculosidade.
É mesmo um delírio. Logo percebo que estou de volta à realidade, aquela em que se pode furtar impunemente o equivalente a 50 milhões de bicicletas que dariam para tratar de tantos brasileiros doentes como o ladrão de bicicleta.
Este o texto. Ao final, um PS: O réu foi solto recentemente, por força de requerimento dos Procuradores do Estado que oficiam na Vara das Execuções Criminais.
O escrito se basta, nada tenho a acrescentar. Apenas começo a divagar, não delirando como o autor e seu brasileiro, mas com a saudade de um professor improvável, que um dia, lá por 2001 ou 2002, entregou esta folha aos 40 alunos improváveis das manhãs frias e desertas de sábado. Não sei se ajudamos no aprendizado das sentenças, mas sou feliz só pela esperança de que não tenham esquecido dos textos que então lhes dei.
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Não preciso dizer que a ilustração é do clássico Ladrões de Bicicletas.
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