Oswald Baudot, juiz de Marselha e membro do Sindicato da Magistratura, fundado no emblemático 1968, pronunciou na posse dos novos magistrados, ocorrida em 1974, um discurso marcante, que recebeu ferozes críticas, mas se tornou mundialmente conhecido. Não lembro quando o li pela primeira vez, mas de vez em quando deparo com ele, e sempre me sinto provocado. Não concordo com tudo o que está escrito, mas sua leitura é um antídoto contra a acomodação. Nestes dias, em que não ando com muita inspiração para escrever, vou de Baudot, transcrevendo a Arenga aos magistrados que estreiam. O leitor também não precisa concordar, mas o convido para refletir:
“Estais empossados e advertidos. Permiti-me que também vos fale, a fim de corrigir algumas coisas que vos foram ditas e de fazer-vos ouvir algumas coisas inéditas. Ao entrar na Magistratura vos tornastes funcionários de um escalão modesto. Não levanteis muito alto a cabeça. Não vos deixeis enganar por palavras como “terceiro poder”, “poder do Povo”, guardiãs das liberdades públicas”. Não tendes senão um poder medíocre: o de meter as pessoas na cadeia. E só vos dão este poder porque ele é geralmente inofensivo. Quando condenardes a cinco anos de prisão um ladrão de bicicletas, não estareis molestando a ninguém. Evitai abusar desse poder. Não penseis ser mais considerados por serdes mais terríveis. Não julgueis que ides, como novos São Jorge, vencer o dragão da delinquência por uma repressão impiedosa. Se a repressão fosse uma coisa eficaz, há muito tempo teria alcançado seus objetivos. Se ela é inútil, como creio, não penseis em fazer carreira à custa da cabeça dos outros. Não conteis a prisão por anos ou meses, mas por minutos e segundos, exatamente como se tivésseis vós mesmos de sofrê-la.
É verdade que entrais numa profissão em que vos exigem sempre que tenhais caráter, mas entendem por isto apenas que sejais inclementes com os miseráveis. Covardes diante dos superiores, intransigentes com os subalternos este é, em geral, o comportamento dos homens. Tratai de evitar isso. A justiça é aplicada impunemente. Não abuseis da impunidade. Em vossas funções, não deveis dar exagerada importância à Lei, e de um modo geral desprezai os costumes, as circulares, os decretos e a jurisprudência. Deveis ser mais do que o Tribunal de Justiça, sempre que se apresentar uma ocasião. A Justiça não é uma verdade estagnada em 1810. É uma criação perpétua. Ela deve ser feita por vós. Não espereis o sinal verde de um ministro, ou do legislador, ou das reformas sempre em expectativa. Fazei vós mesmos a reforma. Consultai o bom senso, a equidade, o amor do próximo, antes da autoridade e da tradição. A lei se interpreta. Ela dirá o que quiserdes que ela diga. Sem mudar um til, pode-se, com os mais sólidos considerandos do mundo, dar razão a uma parte ou a outra, absolver ou condenar à pena máxima. Desse modo que a lei não vos sirva de álibi.
Verificareis, aliás, que, à revelia dos princípios estabelecidos, a Justiça aplica extensivamente as leis repressivas e restritivamente as leis liberais. Procedei de modo contrário. Respeitai as regras do jogo quando ela vos freia. Sede bons jogadores, sede generosos. Será uma novidade. Não vos contenteis de cumprir os deveres do ofício. Vereis desde logo que, para serdes um pouco úteis, devereis abandonar os caminhos batidos. Tudo o que fizerdes de bom será um acréscimo. Gosteis ou não, tendes um papel social a desempenhar. Sois assistentes sociais. Vossa decisão não termina numa folha de papel. Corta na carne viva. Não fecheis vossos corações ao sofrimento nem vossos ouvidos ao clamor. Não sejais desses juízes menores que só querem tratar de processos pequenos. Não sejais árbitros indiferentes acima de tudo e de todos. Tende sempre a porta aberta a todos. Há trabalhos mais úteis do que o de caçar essa borboleta – a verdade – ou de cultivar essa orquídea – a ciência jurídica.
Não sejais vítimas de vossos preconceitos de classe, religiosos, políticos ou morais. Não penseis que a sociedade seja intangível, a desigualdade e a injustiça inevitáveis e a razão e a vontade humanas incapazes de qualquer mudança. Não acrediteis que um homem seja culpado de ser o que é nem que ele dependa apenas de si mesmo para ser de outra forma. Em outras palavras – não o julgueis. Não condeneis o ébrio. O alcoolismo, que a medicina não sabe curar, não é uma escusa legal, mas é uma atenuante. Por serdes instruídos, não desprezeis o iletrado. Não apedrejeis a preguiça, vós que não trabalhais com as mãos. Sede indulgentes para com os demais seres humanos. Não aumenteis suas aflições. Não sejais dos que aumentam a aflição do aflito.
Sede parciais. Para manter a balança entre o forte e o fraco, o rico e o pobre, que não têm o mesmo peso, é preciso que calqueis a mão do lado mais fraco da balança. Essa é a tradição capetiana. Examinai sempre onde estão o forte e o fraco que não se confundem necessariamente com o delinquente e sua vítima. Tende um preconceito favorável pela mulher contra o marido, pelo filho contra o pai, pelo devedor contra o credor, pelo operário contra o patrão, pelo vitimado contra companhia de seguros, pelo enfermo contra a Previdência Social, pelo ladrão contra a polícia, pelo pleiteante contra a Justiça. E tende um último mérito: perdoai este sermão da montanha a vosso colega dedicado.”
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