Teratológico. Aprendi tarde essa palavra, e nunca a vi fora da linguagem jurídica. Não lembro de tê-la usado e não gosto dela. Quando a ouço, penso numa lagartixa com suas patas multiplicadas, como se fosse uma lacraia. Teratológico é isso, um absurdo lógico. Esta lagartixa tem cabeça e pés, muitos, mas poderia não ter pé nem cabeça.
Pois, se antes não a usei, hoje começo o texto com ela. Os crimes de abuso de autoridade que com tanta agilidade foram aprovados na Câmara dos Deputados são isso.
Inventaram tipos penais abertos, pelos quais qualquer um pode ser condenado. Podiam explicar o que é motivação político-partidária? Ser desidioso? Faltar com a dignidade e o decoro? Como se medem essas coisas? Quantas coisas já escrevi que me incriminariam? Se continuar a usar jeans em audiência, isso será atentado à dignidade do cargo? E quanto tempo de conclusão de um processo caracterizará desídia? Se um advogado se queixar à sempre diligente OAB, ela apresentará queixa?
Está lá escrito. Tipos penais abertos são assim: te descrevem uma paisagem completa, de horizonte indefinido, e qualquer coisa cujo contorno se imagine nela incluído pode ser colhida para fazer o enquadramento no conceito.
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Por que os parlamentares criaram esse monstrengo, justamente em cima das dez medidas de combate à corrupção? O que os move? São todos corruptos e criaram esses tipos penais aos juízes e promotores para se verem livres da corrupção?
Quando imagino as motivações individuais, penso que há receio. Listas de delação circulam por aí, e se veem centenas de políticos beneficiados com doações de empreiteiras. E, com as listas, vem essa nossa cada vez mais soberana presunção de culpa, que de antemão os torna corruptos.
Há, no Congresso, dezenas, talvez centenas, de corruptos. Há, também, dezenas, talvez centenas, de parlamentares que poderão ser acusados de corrupção sem serem corruptos. Todos eles se preocupam, uns em permanecerem impunes, outros em terem pleno direito de defesa.
Há a promessa, verbalizada na fala gravada de Jucá, de trancar a Lavajato; há o temor de que o Judiciário não siga as regras dos casos comuns, para usar o eufemismo cunhado no TRF da 4ª Região.
Sei que simplifico ao me limitar ao temor dos injustos de virem a sofrer a justiça e ao temor dos justos de virem a sofrer a injustiça. Há muito mais que isso. Há, por exemplo, a manifestação do espírito de corpo – que também é mais que mero espírito de corpo –, consistente em reagir à generalização, pela qual o Congresso é visto como o lugar dos pecados, hoje acossado por virtuosos agentes da lei.
Nesse contexto, importa dizer a juízes e promotores, principalmente aos que se envolvem nas operações de combate à corrupção – porque é disso que o projeto trata –, que eles são frágeis e podem sofrer as consequências por ousarem agir.
E isso é feito da pior maneira, com a ambiguidade dos tipos abertos, a partir da qual sempre será possível acusar um juiz e um promotor, do mesmo modo como a simples menção do nome de um deputado na lista da Odebrecht serve para que seja acusado.
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Há um forte simbolismo na inclusão dessas hipóteses de crime de abuso de autoridade justamente nas dez medidas contra a corrupção, aquelas do Ministério Público Federal, que obtiveram mais de dois milhões de assinaturas.
As dez medidas não restringiam o habeas corpus, não permitiam a utilização de prova ilícita, o teste da integridade e todo um coquetel de favorecimentos à acusação? Não avançavam contra os direitos individuais, contra a presunção da inocência, contra o direito à liberdade?
Claro, há diferenças: as dez medidas se localizavam no plano processual e as tipificações do abuso de autoridade estão no plano das penas; as dez medidas tinham uma redação técnica; as tipificações carecem de boa técnica.
Mas o que salta aos olhos é o que há em comum, e que não se limita a esse episódio: é a construção da sociedade punitiva, embalada por julgamentos morais, estimulada pela mídia, construída por juízes e promotores sanitaristas, albergada por parlamentares demagogos que a cada momento de comoção criam novos crimes e aumentam penas.
Sempre é bom lembrar que há crimes suficientes para punir os pobres, que longas prisões cautelares dos desvalidos já são regra, que não causam escândalo condenações sem prova nem demoradas prisões que terminam com a absolvição.
O que está para lá do muro social há muito tempo teve relativizados os direitos universais que reconhecemos aos de bem. Nesta sociedade que busca a solução pela punição, na qual a quebra de garantias ocorre a todo momento em nome de ações finalísticas, o campo está propício a que também do lado de cá do muro se comecem a relativizar garantias, se comecem a legislar novos crimes.
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Vivemos num país de constitucionalidade fraturada. Quando a Nação vê deposta uma presidente eleita sem que haja crime de responsabilidade, quando uma parte considerável dessa Nação torce pela deposição e a comemora, chegamos ao ponto em que a lei é mero adorno de fundo para a imposição da vontade.
O que resta de legitimidade? Quem a tem? Se é possível tirar alguém do poder sem crime, só com uma pantomima que preserva os rituais, não é possível fazer qualquer coisa mais? Quando virá de novo alguém para dizer que a Constituição deve ser preservada? Quando se calarão os que justificam atos de exceção?
O episódio do impeachment foi o momento máximo de prevalência da vontade. Se a vontade tudo pode, limitamos direitos, criamos crimes, introduzimos tipos abertos para condenar quem quisermos.
Às favas com os escrúpulos de consciência. A fala de Jarbas Passarinho na aprovação do AI5 vale para este momento. Ou não vale, porque vivemos tempos estranhos, em que uma consciência rebaixada por noções vulgares de moral tomou, como uma metástase, as consciências das pessoas de bem.
Logo, como o criminoso que jura inocência e se convence com seu próprio discurso, cada um defende sua própria moral e tenta impô-la a seu modo, contra quem enxerga o mundo com outras cores.
Uns querem limitar o habeas, outros propõem criar tipos penais abertos. Todos convencidos de sua própria justeza e da nocividade alheia.
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Volto à minha lagartixa de tantas patas, a teratológica. Há necessidade de repensar o abuso de autoridade e criar uma lei moderna para caracterizá-lo? Talvez haja, mas não vi alguém propor seriamente a discussão.
Em quem os deputados que a redigiram ou nela votaram pensavam? No Moro, no Dallagnol?
De que modo cabem, nos seus tipos, eventuais prisões cautelares abusivas, vazamentos de áudios, conduções coercitivas, essas coisas que criticam na Lava Jato?
Quem, supondo-se sejam admitidos esses tipos abertos, eles pensam que oferecerá denúncia por esses crimes? Quem eles pensam que os julgará?
Têm certeza os deputados, que não gostam do Moro e do Dallagnol, que a lei será usada contra eles?
Não servirá para, num período de arbítrio – não veem algo diferente no horizonte? –, cortar cabeças incômodas?
Tipos abertos servem bem para essa maneira, hoje em moda, de ver a Justiça, que permite escolher quem será a próxima vítima. Aos inimigos, os rigores da lei.
Talvez teratológica tenha nascido para impedir a luta contra a corrupção. Provavelmente muitos dos que votaram nela tiveram esse intuito. Já outros têm a justa preocupação com a necessidade de se limitar o abuso de autoridade. Para estes, seria bom cautela, não se entregarem ao canto da sereia. Cabe pensarem um pouco mais, discutirem uma lei consistente e, principalmente, preocuparem-se com o monstro que estão criando.
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Participei do protesto contra a teratológica. Ouvi muitos discursos de combate à corrupção. Ouvi um pouco menos alusões à preservação do papel constitucional da magistratura e do Ministério Público. Ouvi referências à defesa da própria Constituição.
Faço, como nos tempos de assembleias estudantis, minha declaração de voto. Não fui ao protesto para defender o combate à corrupção, fui pelos outros motivos. Não me sentia representado pelas dez medidas, porque em grande medida eram incompatíveis com a defesa da Constituição – e o combate à corrupção não é mais importante que a Constituição.
Quero sinceramente que a corrupção seja debelada, e acho que o Direito Penal é o último lugar – certamente não o principal – em que isso pode ser feito. Não defendo o combate à corrupção a qualquer preço, nem sou contra a teratológica para defender o combate à corrupção.
Apenas quero ver defendida a Constituição, quero ver a lei se sobrepor à vontade, quero ver um freio às vontades punitivas e inquisitoriais que tentam se tornar lei.
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Como fazem falta, nesses tempos sombrios, em que impera a irracionalidade, mais pessoas que façam a defesa dela, a Constituição Cidadã.
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