Jardel

O caso Jardel é um desses episódios rumorosos que ensejam múltiplas abordagens, a começar pelo clichê, alimentado com tantos exemplos, talvez mais do passado que do presente, acerca da tragédia pessoal de atletas que, após subitamente se verem ricos, voltam com a mesma rapidez à pobreza, por conta da falta de capacidade ou de estrutura pessoal para administrarem o patrimônio obtido.

Mas não é de clichês nem da tragédia pessoal de Jardel que quero falar. Tampouco pretendo – nem tenho condições para isso – fazer um tratado sociológico sobre o fato. Mas, como o episódio em si leva a considerações sobre aspectos laterais de relevância, vou rapidamente comentar três pontos.

1. O voto.

Como sempre acontece em situações semelhantes, ouve-se que brasileiro não sabe votar.

Trata-se de uma ideia que tem raiz no pensamento autodepreciativo dos brasileiros: somos burros, preguiçosos, corruptos, etc. Evidentemente, quem emite o juízo, embora também seja brasileiro, se exclui do julgamento, mas a ideia sempre está à disposição em ocasiões como esta.

Há, pressuposta na avaliação, a ideia de que os outros sabem votar melhor do que nós, tese que não tem nenhuma evidência. Personagens folclóricos são eleitos também em outros lugares, e o sistema os absorve, na medida em que há uma diluição dentro de uma casa legislativa com número relativamente elevado de membros.

Ademais, desconsidera o fato de que muitos desses votos são contra o sistema (o que é diferente de ser contra o governo): são pessoas que não acreditam na política e protestam votando em pessoas que a desmoralizam.

Por outro lado, há uma certa arrogância na ideia de que o voto em pessoas previamente estigmatizadas seja necessariamente ruim; quem diria hoje que o voto no Romário e no Tiririca foi pior que o voto no Cunha e no Bolsonaro?

Outro aspecto a considerar é que o voto funciona como num mercado, em que há uma diluição de vontades, e os critérios definidores dessas vontades variam em inúmeras opções. Se, na programação da televisão, há quem escolha um concerto erudito, quem prefira um jogo de futebol ou quem seja fã dos noticiários policialescos, o que nos levaria a concluir que com o voto o comportamento deveria ser diferente?

Mas, num aspecto concordo que somos únicos. O mercado de que falo só é tão diluído no Brasil e em mais dois ou três países que adotam o voto uninominal num sistema proporcional. Ou seja: embora o voto vá para os partidos, votamos nas pessoas; em vez de termos dez ou vinte opções, temos centenas ou milhares. Além disso, como o voto pessoal soma para a legenda, os partidos buscam pessoas famosas para engordarem sua votação, o que significa induzir parcela significativa dos eleitores a dirigir seus votos a esse tipo de personagem, até mesmo pela transferência da admiração pessoal.

Se o voto fosse em lista, dificilmente algum partido apresentaria em primeiro lugar pessoas inexpressivas ou iniciantes na política, mesmo porque isso significaria retirar o lugar dos dirigentes partidários; nesse caso, votaríamos primeiro em um partido e, dependendo da regra, poderíamos escolher dentro dos partidos o candidato da preferência.

Mas essa regra nos retiraria o poder de votar na pessoa. E como o brasileiro, principalmente aquele que diz que brasileiro não sabe votar, faz questão de votar na pessoa, continuaremos a ter eleições de jardéis.

2. A cobertura.

Não acompanhei atentamente a cobertura jornalística envolvendo o caso, mas dois fatos, envolvendo o mesmo grupo de comunicação, me chamaram a atenção.

Primeiro, li a comentarista política dizer que já na eleição estava claro que Jardel precisava mais de tratamento médico que de um mandato. Achei interessante a afirmação, porque, sem absolver o ex-atleta, retirou o foco das acusações que lhe são feitas, para afirmar sua fragilidade pessoal, o socorro de que necessitava, quase sugerindo uma inimputabilidade. Vi nisso um olhar de piedade, que não sei se é bom ou ruim para Jardel, mas que fugia da execração pública, tão comum em veículos de comunicação.

Depois disso, fui surpreendido com filmagem em que um jornalista televisivo do mesmo grupo acompanha o cumprimento de mandado de busca e apreensão à casa de Jardel e, da porta que propositalmente permanece aberta, emite uma saraivada de perguntas acusatórias. Seja pela necessidade do tratamento médico mencionado pela primeira jornalista, seja por suas limitações pessoais, seja pela surpresa, Jardel ficou claramente sem ação e submeteu-se ao vexame imposto por esse jornalista que havia invadido sua casa (ou não é invasão de domicílio parar na porta aberta e impedir que seja fechada?).

O episódio traz de novo à tona essa escandalosa cumplicidade, tantas vezes denunciada, entre agentes públicos e jornalistas, em que os primeiros, à busca de notoriedade ou reconhecimento público, convidam profissionais de veículos de grande audiência para a cobertura de diligências, assim submetendo os acusados a condenações prévias, mediante a invasão de sua privacidade, não autorizada pela lei ou pelo mandado que cumprem.

Essa falta de ética sempre encontra correspondência em jornalistas ambiciosos, prontos para repetirem o que no cinema já foi tantas vezes exibido, demonstrando que o jornalismo abutre não é uma caricatura, mas está sempre pronto a acontecer.

Interessante é que o mesmo veículo serve para que uma jornalista faça o discurso da fragilidade do personagem e outro jornalista tire proveito de sua fragilidade para vilipendiá-lo, muito antes de ser submetido a julgamento.

3. A suspensão.

Não comentei, nem posso, a prisão de Delcídio Amaral, e pelas mesmas razões não comentarei a suspensão do mandato de Jardel. Apenas me atrevo a dizer que, no fundamental, a prisão de um e a suspensão do outro dão margem à discussão sobre a soberania do voto e as garantias que lhe são destinadas, seja do ponto de vista de sua suspensão ou revogação – e nesse ponto a prisão e a suspensão do mandato têm o mesmo efeito –, seja do ponto de vista de quem pode fazê-lo, o Judiciário ou o Legislativo.

É um ponto interessante a discutir, que diz com a própria conformação da nossa democracia.

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