Tem a ver

Sabe aquelas coisas que são totalmente óbvias pra ti, de modo que as dizes sem mesmo pensar muito, chega o gaiato e pergunta “o que uma coisa tem a ver com outra?” É terrível quando isso acontece: aquela relação causa-efeito contida de modo implícito no teu pensamento, que saiu ao natural e sobre a qual não tens a menor dúvida, é afrontada assim com poucas palavras, e justamente porque te parece óbvia, não carecendo de argumentos, te vês sem palavras para responder.

 
Foi o que aconteceu quando compartilhei a reportagem sobre a Banda Liberdade. Eu escrevi “Enquanto uns defendem a redução da maioridade penal… Sou mais o Dalmir.”, e a resposta veio direta: “o que uma coisa tem a ver com a outra?”

Pois é. E agora, o que dizer? Minha sensação foi mais ou menos como a que tive quando, aos quatro anos, meu filho perguntou “pai, o que é estrutura?”: a de desamparo por não saber como responder.

A primeira coisa que pensei – não para a estrutura, para a maioridade penal – foi um silogismo falacioso, em que generalizava a posição do Dalmir. Era mais ou menos assim:

Dalmir faz trabalho social com jovens infratores.

Dalmir é contra a redução da maioridade penal.

Logo, quem faz trabalho social com jovens é contra a redução da maioridade penal.

Já ia rejeitar a ideia, quando pensei: “tudo bem, é falso, mas é um começo”.

Sim, é falso porque tomo a posição individual de quem se dedica ao trabalho com a Banda Liberdade para chegar a uma conclusão de valor universal, mas posso pensar em outras pessoas que realizam trabalhos semelhantes, para ver se essa minha generalização se robustece pela repetição.

Claro, não conheço pessoas que se dedicam a semelhante atividade em número suficiente para validar estatisticamente minha afirmação, mas é um começo. E aí vejo que posso trocar o nome do Dalmir pelo de João, Teresa, Raimundo, Maria, Joaquim, até mais gente que no poema de Drummond, mas não Lili, que não ama ninguém.

É um avanço: as experiências que conheço de trabalho com jovens infratores ou mesmo adolescentes em situação de marginalização social são sempre coincidentemente realizados por pessoas que se posicionam contra a redução da maioridade penal. Não conheço, entre os que se dedicam a semelhante projeto, quem defenda a redução.

Bem, mas até aí, mesmo porque não sei da relevância estatística da minha amostragem, estamos ainda na falácia da generalização.

Por isso, vou um pouco adiante, e tento entender essas pessoas. Será que são todas vítimas de uma espécie de Síndrome de Estocolmo ou algo que o valha, que as leva a uma atitude irracional de proteção dos adolescentes que praticam atos infracionais?

Certamente não: a própria opção por dedicar-se a esse trabalho já supõe em si um conjunto de convicções e sentimentos que depois somente se reforça.

O que importa é saber se essas convicções e sentimentos podem ser compatíveis com a ideia de redução da maioridade penal.

Este é o ponto: saber o que move essas pessoas e compreender se há um motivo pelo qual, mesmo pequena minha amostragem, ela se valide pelo elas pensam.

Começo pelo mais óbvio, quase um truísmo, mas que precisa ser dito: essas pessoas sentem amor. Não o amor do Drummond, nem o amor por nossos familiares ou por amigos mais chegados, que são amores fáceis e funcionam no automático, mas aquele amor solidário pelo próximo, que exige um espírito de doação e uma confiança na humanidade.

De regra, esse motor que move quem se dedica ao trabalho social não combina com a ideia de punição, muito próxima da vingança.

Claro, alguém poderá dizer que a punição pode ser um ato de amor: o castigo como método pedagógico, que permitirá ao infrator refletir sobre o ato que cometeu e em razão disso não repeti-lo. Mas aí chegamos a uma diferença essencial entre o Código Penal e o Estatuto da Criança e do Adolescente: enquanto um impõe penas, ou outro aplica medidas sócio-educativas. E não se trata de minúcia semântica: trata-se de reconhecer que adolescentes não têm ainda o grau de amadurecimento de um adulto, e por isso não podem ser punidos da mesma forma.

Mas não é sobre isso que estou a falar, porque a matriz do pensamento não muda, seja quando se destina a adolescentes, seja quando a adultos: em ambos os casos, coincidem entre as pessoas, de um lado, concepções punitivas e, em sentido inverso, a convicção na recuperação.

Se, em tese, a pena é fundamentalmente pensada pela dúplice função, retributiva e ressocializadora, certamente nenhuma pessoa medianamente informada ainda acredita que neste país, salvo em situações muito peculiares, a cadeia, também chamada de universidade do crime, exerça a função ressocializadora. Duvido que algum dos leitores acredite no sistema carcerário do Brasil como um lugar de onde as pessoas saem recuperadas, com emprego em vista, reinseridas na sociedade. Se assim pensa, lamento informar que joga no time dos ingênuos.

Então, quem vê a cadeia ou qualquer coisa que leve a ela, incluindo aumento de penas e redução da maioridade penal, como alternativa, certamente não baseia seu pensamento na ideia de ressocialização, que não existe e todo mundo sabe que não existe; a motivação é outra.

E tenho minha explicação. Não vou falar das posições caricaturais (mas trágicas), como a do relator da redução da maioridade penal, que sonha com o aborto dos fetos criminosos; vou falar das pessoas comuns, como nós.

Há duas motivações essenciais entre os que defendem mais punições: a vingança e o medo. O sentimento de vingança, arraigado no fundo de cada alma, quer que as pessoas sofram pelo mal que causaram. E como a vingança é do mesmo departamento que o ódio, não combina com amor, esse que faz o Dalmir se dedicar à Banda Liberdade.

Já o medo, que em grande medida também é compartilhado por todos nós, e se justifica em razão da grande criminalidade, tem um falso alívio cada vez que alguém é preso. Digo falso o alívio, porque se baseia na ilusão de que o encarceramento de alguns, ou até de muitos, do mais de meio milhão de presos que existe no Brasil, tornará a sociedade mais segura, como se não ficassem em liberdade tantas pessoas mais que cometerão crimes, como se os que são presos não fossem sair logo, piores do que entraram.

Na verdade, qualquer explicação minimamente racional para a existência da criminalidade deve passar longe da maldade humana e buscar as causas nas condições sociais do país. Senão, não haveria resposta possível para entender uma criminalidade crescente, apesar da multiplicação do número de cadeias.

E aí talvez esteja uma segunda razão, além do amor, para as pessoas que se dedicam ao trabalho com adolescentes serem contra a redução da maioridade penal: elas sabem que seu trabalho é mais eficaz que qualquer pena.

Mas, dirá o gaiato, se isso funcionasse também estaria reduzida a criminalidade. Não, respondo eu, porque esse trabalho também não ataca as causas estruturais que levam a ela; além disso, é um trabalho no varejo, que atinge pouquíssimos destinatários.

Mas, fiquemos no varejo, e pergunto: esses jovens de Passo Fundo têm mais chances de se tornarem cidadãos na Banda Liberdade ou na cadeia? Não precisa responder, eu sei a resposta.

Bem, voltando ao meu silogismo, creio que dei a razão para que o Dalmir e tantos quantos conheço que se dedicam ao trabalho social com adolescentes serem contra a redução da maioridade penal. Essa razão não é mera coincidência, e por isso não tenho medo de que falte à minha amostragem a relevância estatística que torne aceitável o silogismo.

Por isso, tem a ver: Banda Liberdade, contra a redução da maioridade penal.

Três observações:

1) Se você é a favor da redução da maioridade penal ou o é em algumas circunstâncias e acredita que isso de fato pode recuperar os adolescentes presos, peço desculpas pela generalização, não era meu objetivo fazer nenhuma crítica individual.

2) Lembrei que o aumento do número de prisões tem sido um tema recorrente em meus textos. Para quem não conhece e quer ler, puxo alguns pela memória: Quantos presos queremos ter?, Quanto custa?, Matemática aplicada, Quase Sérios.

3) Também escrevi sobre o trabalho com a banda Liberdade.

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