Solidariedades

É no plural mesmo: solidariedades. A palavra é polissêmica e serve para muitas coisas. Se, a meu critério, penso uma acepção principal, imagino o apoio, moral ou material, a quem esteja em situação de dificuldade.
Assim estreitado o conceito, eu me atreveria a dizer que a Orquestra Villa-Lobos não necessita disso. Afinal, há 23 anos existe esse trabalho, que se irradiou das aulas de flauta de uma escola da Vila Mapa para toda a Lomba do Pinheiro, atingindo hoje quase um milhar de crianças, adolescentes e jovens. A Orquestra Villa-Lobos já obteve reconhecimento, que decorre não só da proposta de inclusão social, mas também – e isso é essencial – da boa música que pratica.
Não é fácil manter um projeto desses, exige muita dedicação, mas também ajuda financeira – imagine-se só o custo da manutenção de mais de vinte monitores, que ensinam música a essas centenas de alunos. Certamente, pelo alcance social, merece apoio, mas isso não é bem a solidariedade na acepção que pensei e não tem nada parecido com caridade.
Por isso, senti um quase calafrio quando ouvi a pergunta, endereçada a alguns integrantes da Orquestra, em que a pessoa queria saber o que eles estariam fazendo nesse momento se não integrassem o projeto. A resposta foi muito educada – parece que estão acostumados à pergunta –, mas imaginei que a expectativa de quem perguntou era outra, e eu próprio pensei uma resposta do tipo “eu estaria traficando”, “e eu seria assaltante”.
A mal educada resposta que imaginei veio porque senti na pergunta uma inconsciente, mas indisfarçável, ideia de que estávamos diante de coitadinhos, resgatados da miséria pela caridade alheia, nesse momento praticada por nós próprios, membros dessa generosa classe média.
Sim, compreendo bem: fica mais bonita a história de que, com nossa bondade redentora, salvamos alguém da desgraça, mas não penso que caiba essa ideia mirabolante e equivocada para um apoio que pode ter outras motivações bem mais palpáveis e socialmente relevantes. E, bem compreendidas, mais gratificantes.
Acontece que a ideia de solidariedade, aí entendida num sentido mais amplo, é um tanto destoante da de caridade, e mais próxima da de fraternidade, aquela da Revolução Francesa. É uma ideia de apoio a iguais ou a quem, pelo apoio, pode se tornar mais igual. Trata-se de um trabalho de inclusão.
Pensar inclusão evidentemente impõe pensar políticas públicas, como aumento de salário mínimo, estímulo à construção de moradias, políticas de cotas, políticas de rendas. Isso é imprescindível. Mas é também insuficiente, porque pensar inclusão significa também romper barreiras sociais, combater o racismo e todo tipo de discriminação. Significa tomar iniciativas sociais que, muito mais que qualquer política pública, levem a um compartilhamento da educação, da cultura, à construção da cidadania. Em outras palavras, à superação da exclusão como prática social.
Pensando bem, é o contrário da caridade: esta se alimenta da pobreza e não consegue imaginar sua superação, porque aí a própria caridade deixaria de ter sentido.
Por isso, é tão importante o apoio à Orquestra Villa-Lobos (ou a um Projeto Wimbelemdon, outro projeto bem sucedido de inclusão social). E, fique claro: isso é quase nada, e daqui a pouco caímos nós próprios na armadilha de apoiar alguns projetos com grife, transformando-os em símbolos solitários, emblemas de iniciativas isoladas que se bastam por si, ao invés de as tomarmos como exemplos para outras iniciativas, que somente em grande escala farão alguma diferença social.
A Orquestra Villa-Lobos é isso: uma iniciativa bem sucedida, que deve ser apoiada por seu significado social, mas cuja visibilidade só faz sentido se inspirar outras tantas experiências, que aguardam por nossa própria iniciativa.
O concerto que se realizará no Foro Central em 5 de novembro tem essa marca: a de mostrar, com uma música de qualidade, o resultado que pode ser alcançado por um trabalho sério, mas apaixonado, na busca da inclusão social e da construção da cidadania.
E foi esse exercício de cidadania que levou a Orquestra a redirecionar a solidariedade, ao decidir que metade da renda obtida será destinada às vítimas da enchente e dos temporais. Nesse caso, sim, a solidariedade assume contornos de caridade, porque se trata de ajudar materialmente pessoas que perderam seus pertences e, em alguns casos, suas moradias, por força de fenômenos naturais.
É caridade, porque servirá como alívio temporário em momento de maior dificuldade, mas não permitirá que os afetados fiquem livres de futuros temporais ou enchentes. Mas é uma caridade necessária, porque neste momento essas pessoas passam por extremas dificuldades. A bela mobilização social, a larga adesão das pessoas a esse exercício de solidariedade, tem também o efeito de mostrar que ainda há, mesmo numa sociedade tão individualista e voltada para o benefício pessoal, um conjunto suficiente de pessoas que se preocupam com o próximo em dificuldades e se dispõem a ajudá-lo.
E os membros da Orquestra Villa-Lobos estão entre essas pessoas. Esta é a mais clara demonstração de que não carecem eles próprios da caridade alheia, mas de que são cidadãos que sabem exercer a solidariedade. E nisso são um exemplo a todos nós.

O concerto é no dia 5 de novembro, às 18:30, no auditório do Foro Central II, e os ingressos podem ser adquiridos na AJURIS, SINDJUS, ASJ, ABOJERIS, CEJUS, ACEDIJUS e OAB. Quando você estiver lá, esqueça por um momento a discussão sobre solidariedade, e curta a música. Somente.

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