Quanto custa?

O “quanto custa?” me acompanha desde sempre, certamente por força de uma infância em que tudo tinha de ser bem contado para as coisas não faltarem. São aquelas marcas que, como impressões digitais, não se apagam e ficam indelevelmente grudadas na pessoa.


Por isso, não me espantei quando, do nada, comecei a fazer esta pergunta ao me deparar com assuntos em que a necessidade de saber o preço não era tão aparente. Lembro de tê-la feito quando escrevi sobre a crise no sistema penitenciário (Quantos presos queremos ter?), ocasião em que calculei quanto custaria cada nova vaga nas prisões e perguntei se interessava à sociedade gastar nisso antes de destinar esses valores à educação, à saúde ou até mesmo à própria segurança.

Com efeito, e não só pelo custo dos presídios, qualquer alteração na legislação penal produzirá ou reduzirá despesas, conforme crie novos tipos e aumente penas ou então faça o contrário. Claro que a hipótese de reduzir despesas é remotíssima, porque, à direita e à esquerda, só vejo serem aprovadas leis penalizadores (as poucas propostas abolicionistas, referentes, por exemplo, a aborto e entorpecentes, são minoritárias, com pequenas chances de aprovação).

Cada vez mais, considero importante pensar quanto custa: os recursos são finitos e as necessidades ilimitadas, então tenho de comparar e decidir pelo que vou lutar: não posso, por exemplo, desejar, a não ser que me alinhe aos seres não pensantes da internet, que ao mesmo tempo se prenda mais gente, se construam hospitais e se contratem médicos, se melhore a educação e assim sucessivamente, tudo isso acompanhado da redução de impostos.

Evidentemente, o raciocínio assim simplificado supõe que eu queira comprar todas as mercadorias e só por uma questão de carência pergunte “quanto custa”, para então decidir o que será adquirido: bem sabemos que sempre há aquelas mercadorias que, mesmo oferecidas a custo zero, não nos interessam e não as levaríamos ainda que nos pagassem por isso. Acho, por exemplo, que, se se prendesse bem, poderíamos reduzir à metade as vagas nos presídios.

Com essa ressalva, é necessário também fazer uma inflexão no meu raciocínio, para que as coisas não se reduzam a um mero pensamento econômico: as decisões certamente não se reduzem a saber o preço de cada coisa e em razão disso decidir qual será comprada, mas também em lhes atribuir valores; assim, do mesmo modo como um vegetariano de nenhum modo compraria carne, muitos gastos públicos podem ser rejeitados justamente pelos valores que estão em jogo. Já outras são tão importantes que por elas nos dispomos a pagar mais.

Tudo o que disse até agora vem a propósito de ressalvas que tenho ouvido, aqui e ali, à audiência de custódia.

Ao leitor leigo em direito, que já percebeu meu interesse na matéria, esclareço que audiência de custódia é aquela em que a pessoa é apresentada a um juiz logo após ser presa. Isso é um direito do preso, previsto na Convenção Interamericana dos Direitos Humanos, aprovada em 1969 e ratificada pelo Brasil em 1992, mas que aqui nunca foi cumprida.

Desde logo fique claro, portanto, que aqui nem ao menos se nos coloca a opção de perguntar quanto custa, porque não se discute se a lei deve ou não ser aprovada: ela já integra nosso ordenamento jurídico.

Mesmo assim faço a pergunta, porque o “quanto custa” tem vindo de outro modo, sem que lhe seja dada imediata expressão monetária, principalmente por parte daqueles a quem incumbe cumprir a medida, acima de tudo juízes e delegados, que terão mais trabalho (a resistência,ainda maior, entre os promotores, mereceria um texto à parte).

Respondo pelos dois lados, o “quanto custa” econômico e o “quanto custa” do trabalho.

Pelo lado econômico, penso que há um custo inicial de implantação, porque talvez sejam necessárias mais viaturas e a criação de um aparato próprio que exija mais funcionários, seja da Polícia, seja do Judiciário, seja do Sistema Penitenciário. Penso, de qualquer maneira, que a repercussão econômica será pouco significativa e certamente menor do que um efeito quase imediato de poupança pela sensível redução no número de presos provisórios (já explico essa parte). Assim, haverá um pequeno investimento inicial e uma quase certa redução de custos a médio prazo.

Quanto aos segundo aspecto, o aumento do custo-trabalho, certamente estamos diante de um desafio, que imporá uma reengenharia, em alguns casos redistribuição de funções e em outros certamente um aumento de trabalho. Como juiz, digo: mais um aumento de trabalho, dos muitos que se apresentaram nos últimos anos, fruto da multiplicação de demandas, que cada vez mais estendem a jornada de trabalho de magistrados e servidores do Judiciário.

Mas, pergunto, por que, justo aí, tem havido tanta resistência? E pergunto diretamente aos juízes: se somos guardiões da Constituição, se devemos aplicar a lei, o que justifica a resistência? Vou mais adiante e pergunto: não queremos comprar esse produto porque é muito caro ou porque de qualquer maneira não aceitaríamos adquirir essa mercadoria, por não nos interessar?

Lembro que o Projeto Piloto recentemente criado em colaboração entre o Conselho Nacional de Justiça e o Tribunal de Justiça de São Paulo trazia entre seus objetivos o de reduzir o encarceramento em massa. Ora, o simples fato de que em sua justificativa esteja implícita a ideia de que muitas pessoas não permaneceriam na prisão se ao menos tivessem a possibilidade de serem desde logo ouvidas por um juiz é um grito alarmante, em si motivo mais que suficiente para a adoção urgente da medida.

Não podemos ignorar que, sendo o juiz uma pessoa humana, por mais que se preocupe em ficar imune ao clamor popular, muitas vezes acaba involuntariamente ocupando o papel de protetor da sociedade, que tão facilmente resvala para uma prática de prender e prender. E é muito mais fácil fazer isso se não olhamos o rosto do preso, se nem ao menos conhecemos o lugar para onde o mandamos.

A audiência de custódia é um antídoto para esse risco, um momento em que o olhar do juiz se cruza com o do preso, em que o preso poderá se fazer ouvir. E não só para ser solto. Talvez uma das impressões mais marcantes da minha jurisdição tenha sido aquela em que, no plantão, após explicar a um preso o motivo por que mantinha sua prisão, senti nele a presença da humanidade como nunca vira em audiências de instrução.

Mas, ao falar assim, pareço afirmar que vale a pena pagar o preço. A questão não é esta; a questão é saber se, com todas as dificuldades que a audiência de custódia trará, nos é dado o direito de perguntar quanto custa. Eu respondo: não!

Podemos discutir modos de operacionalização, mas não nos é dado resistir, sob pena de continuarmos a negar um direito já assegurado e por nós solenemente ignorado.

Escrevi Audiência de custódia e violência policial, sobre a revelação de violência policial na apresentação de presos, e A audiência de custódia foi terceirizada, sobre o caso da travesti Verônica.


Deixe uma resposta