A frase foi dita há algum tempo, no meio de uma discussão sobre políticas inclusivas. Dita – sublinhe-se – com a pretensão de ser definitiva. Afinal, pensava meu interlocutor, se alguém da Restinga é capaz de superar as adversidades e chegar onde chegou, isso é uma prova cabal de que as oportunidades são iguais para todos. Logo, nada de políticas inclusivas.
Trata-se de um recurso imemorial, sempre usado na mesma proporção em que ocorre a desigualdade social: quanto maior é, mais existe a necessidade de demonstrar que a sociedade oferece mecanismos de inclusão. Pinçam-se, então, exemplos de pessoas bem sucedidas que vieram de bairros pobres e servem de exemplos vivos acerca da possibilidade de sucesso.
Pior é quando os casos são contados na primeira pessoa, com a pretensão de acabar com a discussão. O narrador é a testemunha viva de si próprio, seu autotroféu, que carrega para todos os lados, numa mal disfarçada empáfia, em que diz “viu, com esforço todos conseguem”, embora no fundo queira dizer que ele próprio é o máximo, porque conseguiu o que os outros não conseguem.
Nessa posição ambígua, e porque sabe o quanto lutou, transforma sua história em baluarte contra qualquer política inclusiva. Afinal, se tanto ralou para obter o sucesso, por que motivo se justificaria dar moleza para os outros? “Eu vim da Restinga”, com o “eu” acentuado, transforma-se no grito de guerra de um meritocrata, que não tolera a ideia de que outra pessoa do bairro receba apoio de qualquer natureza para chegar aonde ele chegou.
Não vem ao caso se esse lugar é subalterno, o fato é que ele não precisou de ninguém para chegar lá, e por isso, na sua infinita inveja em relação aos competidores imaginários que poderão se aproveitar de algum estímulo para chegarem ao mesmo lugar, torce que as regras do jogo continuem eternamente excludentes.
E o seu exemplo pessoal se sobrepõe a qualquer argumento contrário. “Se eu pude, os outros também podem”, insiste ele com essa sua modesta arrogância – ou seria modéstia arrogante? –, “sigam o meu exemplo”. A concessão máxima que faz é à ajuda divina, mas de novo como autolovação, porque Deus viu seus imensos méritos e o distinguiu entre tantos.
E segue sua vida de emergente deslumbrado, louvando a meritocracia e dando graças a Ele por ter saído da Restinga. A Restinga é a memória vaga de um passado indesejável de pobreza do qual se livrou. E os que lá ficaram? Virem-se: nosso meritocrata precisa que a Restinga e seus moradores continuem pobres, para servirem de tributo aos seus méritos.
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A foto, de Filipe Castilhos, é da Restinga e foi retirada do Sul 21.
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