O que tiveram em comum o tsunâmi que atingiu o Sri Lanka e o furacão Katrina, que atingiu Nova Orleans, além do fato de terem sido fenômenos climáticos? Foi a voracidade do mercado, que, ao aproveitar-se do choque causado pelos desastres, removeu pescadores da costa asiática, colocando em seu lugar resorts de luxo, e retirou a população pobre da Louisiana das suas antigas moradias, derrubando também suas escolas e hospitais, para construir condomínios e instituições privadas.
As referências são de Naomi Klein, no seu livro A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Mas estes são dois exemplos menores, em que a oportunidade de reconstruir tudo do zero, seguindo regras do livre mercado, decorreu de fatores climáticos.
Mais comuns são as oportunidades causadas pela ação humana, como quando, inaugurando a aplicação prática das teorias da Escola de Chicago e de seu guru Milton Friedman, o livre mercado foi imposto no Chile e na Argentina a partir de 1973 e 1976 pelas sanguinárias ditaduras de Pinochet e Videla.
Naomi Klein mostra como o neoliberalismo, que se ampara no discurso das liberdades individuais e na defesa do mundo livre, foi aos poucos se impondo como doutrina hegemônica, ao se aproveitar de golpes, guerras e desastres, que põem a população em estado de choque coletivo. Desse modo, tornou possível a implantação das mudanças impopulares, que, ao longo de quatro décadas, consolidaram o triunfo de um capitalismo livre de controle, entre cujos efeitos está, em escala planetária, uma brutal concentração da renda e da propriedade, com o correspondente aumento da miséria.
Os exemplos se sucedem: a Guerra das Malvinas, que deu a Thatcher popularidade suficiente para impor suas reformas, o bombardeio ao parlamento russo e a assunção do poder absoluto por Yeltsin, que lhe permitiu impor à força a privatização naquele país, o 11 de setembro, que permitiu a Bush botar as mãos no petróleo iraquiano.
O livro é bem anterior ao nosso golpe, mas certamente as ideias de Naomi Klein se aplicam ao Brasil. Aqui, com o apoio da grande mídia e a mobilização da classe média, a ordem constitucional foi quebrada em nome do combate à corrupção, assumindo o poder o vice-presidente, com seu programa redigido já como alternativa neoliberal àquele da sua presidente, que havia sido submetido às urnas.
O choque está no golpe, na derrota de quem apoiava o governo eleito, na carta branca dada ao governo usurpador. Dado o golpe, a mídia e a classe média revoltada deram por cumprida sua ação.
O caminho ficou livre para, nessa janela de pouco mais de dois anos, fazer o tema de casa: reforma trabalhista, reforma previdenciária, privatização da Eletrobrás, abertura da Amazônia à mineração, redução do Estado pela privatização. O patrimônio público construído em décadas de esforços coletivos passa a ser dilapidado a preço de banana. Tudo se pode privatizar, desde o Aquífero Guarani até a Amazônia. É a doutrina do choque no Brasil, com a cumplicidade de um Congresso eleito com doações milionárias de campanha e a letargia da sociedade, ainda em choque.
É imprevisível o quanto será feito nos meses que restam e difícil saber se ainda pode acontecer uma até aqui inexistente mobilização popular de resistência.
Mas o Brasil segue o roteiro, como parte desse mundo globalizado, ameaçado pela miséria, pela superpopulação e pelo aquecimento global, em que o capitalismo está a caminho de morrer de overdose.
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O livro de Naomi Klein deu origem ao filme The Shock Doctrine, que recomendo, apesar da má qualidade das legendas em português. Retirei a referência à morte por overdose do capitalismo de Wolfgang Streeck, ainda pouco traduzido para o português, cujo pensamento sobre o fim do capitalismo, sucedido por uma sociedade dominada pela ganância e pelo medo, está resumido neste artigo.
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