Ia iniciar este texto dizendo que a corrupção é um fenômeno inerente à condição humana, quando me lembrei dos relatos acerca de integrantes de tribos primitivas, que, estimulados a se beneficiarem à custa de seus irmãos, mais do que se negarem a isso, simplesmente não compreendem a oportunidade que lhes é oferecida.
Retifico, por isso, para dizer que a corrupção é um fenômeno histórico, presente nas sociedades que, produzindo excedente de riqueza, permitem que alguns se apropriem de mais do que outros, ensejando uma disputa, nem sempre lícita, pelas maiores fatias do bolo.
Faço esta distinção mais como um consolo para nós próprios, ao negar que a corrupção esteja no nosso DNA, que por qualquer consequência prática, porque as sociedades contemporâneas são por natureza governadas pelo mercado, e por isso submetidas à competição que gera o caldo de cultura em que floresce a corrupção.
Evidentemente, assim como o roubo, o homicídio, o estupro e outros crimes, há nações em que a corrupção está melhor controlada e outros em que ela se apresenta de modo muito intenso. Penso que há alguns marcos distintivos que de algum modo são decisivos para estabelecer o grau de corrupção: sociedades democráticas tendem a ser menos corruptas que sociedades autoritárias, sociedades mais igualitárias tendem a ser menos corruptas que sociedades muito desiguais, sociedades com um sistema de justiça desenvolvido tendem a ser menos corruptas que sociedades em que o sistema de justiça não funciona e assim por diante.
Outro fator determinante está na história de cada nação. Já foi muito estudado o caráter patrimonialista que marca a gênese do estado brasileiro desde o domínio português, sem nunca nos ter abandonado, nem após a retomada da democracia. Ocupantes de funções públicas se consideram autorizados a negociar em proveito próprio em nome do Estado e empresários que com ele contratam veem como normal ganharem contratos pagando propinas a quem lhes pode facilitar a obtenção de vantagens.
Esta cultura está impregnada entre muitos – provavelmente a maior parte dos – brasileiros, que, embora capazes de se indignar com os políticos corruptos, praticam no dia a dia transgressões para se darem bem, seja tendo como vítima o próprio Estado, como na sonegação fiscal, seja para se beneficiar à custa de outros cidadãos, como todos os dias acontece no trânsito.
Há alguns anos, ficou famosa a propaganda de cigarro em que Gérson recomendava ao potencial consumidor que tirasse vantagem em tudo. A Lei de Gérson foi – e ainda é – uma das características culturais do brasileiro.
O PT é filho dessa sociedade, e, a despeito dos propósitos moralizadores que em muito marcaram seu discurso dos primeiros anos – talvez a principal causa da obtenção de um massivo apoio num setor da classe média que, mais que ter preocupações sociais, acreditava na moralização da política – acabou por sucumbir a essa cultura. Não digo que isso tenha acontecido com todo o PT, mas com certeza envolveu número suficientemente representativo de seus quadros dirigentes para passar à sociedade a imagem de corrupto.
Essa imagem se fortalece por duas razões: primeiro, os inúmeros inimigos que acumulou em razão de suas políticas mais igualitárias ou pelo simples fato de ser governo passaram a bater sistemática e seletivamente no partido para fustigá-lo; segundo, essa ampla faixa de brasileiros que acreditou no discurso de honestidade se viu traída, e todos sabemos como é mais fácil odiar o responsável pela ilusão traída que aquele cuja vileza nunca nos enganou.
Certamente, desde o início havia no PT uma certa quantidade de pessoas receptivas à ideia de se beneficiarem ilicitamente da política, mas fundamentalmente o partido foi vítima de uma maldição que ronda a esquerda: ou ela se mantém aferrada a seus ideais e está condenada a ser eternamente oposição ou passa a negociar princípios para exercer o poder.
Ao assim expor essa escolha de Sofia, não emito juízo de valor pela opção feita: o objetivo de qualquer agremiação que se aventure na política é o de alcançar o poder para aplicar as suas propostas, e essa regra vale com mais razão para partidos com perfil ideológico definido.
Todavia, é certo que houve uma escolha pelo pragmatismo, e talvez a marca dessa opção esteja na fala atribuída a Lula de que estava cansado de perder eleições. Foi a partir dessa percepção que se construíram o programa e as alianças que levaram à vitória eleitoral de 2002 e à permanência no poder nas eleições subsequentes.
Novamente é necessário esclarecer: tornar-se pragmático não é tornar-se corrupto, mas a escolha do caminho indicava o risco. Assim, ampliaram-se alianças, aceitaram-se apoios, cooptaram-se quadros, construiu-se um discurso, tudo com a finalidade de, como condição para a vitória eleitoral e a posterior governabilidade, permitir a execução de suas políticas.
Evidentemente, para trilhar esse caminho, fortalecem-se internamente aqueles que são mais aptos a exercer o pragmatismo emergente; depois, na medida em que chega ao governo, abre-se o caminho para a aproximação e cooptação de todo tipo de pessoas que gravitam em torno do poder, inclusive aquele numeroso batalhão de oportunistas de todos os tipos.
Ingressa-se num círculo vicioso praticamente impossível de ser quebrado, principalmente quando parte significativa dos próprios quadros sucumbe ao canto de sereia: um partido que quer ser hegemônico precisa ter capacidade de forte articulação nacional, para isso precisa de dinheiro, para isso precisa de doações, para isso precisa…
Hoje, o partido paga o preço da escolha. Mais uma vez ressalvo: não há relação de causa-efeito absoluta entre buscar o poder e sucumbir à corrupção, mas o pragmatismo necessário à construção da viabilidade eleitoral enfraquece as defesas.
Quantos no PT são corruptos? Não sei. O PT é mais corrupto que os outros partidos? Não acredito. Mas hoje parece inverossímil a ideia de que se manteve absolutamente íntegro e que não passa de vítima de seus numerosos inimigos.
A propósito da maldição que afeta as esquerdas, acrescento uma maldição própria do sistema eleitoral e, em sentido mais amplo, o sistema de poder brasileiro: a de que nenhum governo sobrevive sem um amplíssimo leque de alianças, que só se consumam pelo balcão de negócios: quantos ministérios, quantos cargos, quanto de orçamento, e assim segue.
Nada disso se resolverá com eventual queda do PT e nenhum outro partido, seja dos hoje existentes seja de qualquer associação de virtuosos que venha a se formar, conseguirá chegar ao poder se não fizer alianças amplíssimas e tiver muito dinheiro para campanha, nem conseguirá se manter no poder sem se submeter aos apetites dos parceiros necessários para a constituição das maiorias.
Tenho claro que o combate à corrupção de fato exige uma mobilização da sociedade brasileira; tenho claro também que é necessário estimular o prosseguimento das investigações, com punições exemplares, mas não se iluda quem hoje protesta: o fim da corrupção (melhor não dizer fim; melhor dizer redução) passa por uma reforma política profunda, que exige inúmeras medidas, a maior das quais o fim das contribuições de campanha por empresas. E isso não será aprovado com a adesão sincera da maioria do Congresso, mas somente com uma forte mobilização social, com propostas qualitativas, que passam longe dos chavões muitas vezes diversionistas bradados pelos líderes dos protestos.
A sociedade brasileira corre o risco de, passado o ímpeto de protestar, e principalmente porque não consegue identificar o que de fato permite a perpetuação da corrupção, voltar para casa e em pouco tempo voltar a assistir pela televisão novos escândalos, com estes ou com outros protagonistas.
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