Os juízes de Berlim

A frase tem vindo de vários quadrantes, sempre em tom de exultação: “Ainda há juízes em Berlim.”

Sei, é dessas expressões que se vulgarizam e com isso passam a ter seu sentido diluído. Nesse caso, passou a ser utilizada cada vez que alguém deseja comemorar uma decisão judicial, qualquer que seja.

Quando a conheci, ela ainda não era moda – tanto que não a conhecia –, e a vi num contexto em que quem a utilizou mencionava a corajosa resistência do Judiciário alemão ao nazismo.

Era uma época sem internet e seus mágicos saites de busca, e só anos depois vim a descobrir que ela nada tinha a ver com o nazismo, sob o qual nem mesmo houve muita resistência no Judiciário.

Agora, que já existem os saites de busca, também não me é necessário contar a história do moleiro de Sans-Souci, que, dizendo que levaria a questão aos juízes de Berlim, resistiu à pretensão de Frederico II de lhe tomar o moinho.

O fato é que a frase se tornou emblemática da existência de um Judiciário capaz de proteger os fracos diante da investida dos poderosos, um Judiciário de garantias: enquanto houvesse juízes em Berlim, nenhum soberano seria capaz de sobrepor seus caprichos aos direitos de um homem comum.

Depois, na medida em que se tornou moda, passou a ser utilizada com cada vez menos critério, de modo que hoje nem mesmo os saites de busca são capazes de, com uma consulta básica, impedirem o apagamento do seu conteúdo.

Não sei se, tivesse o moleiro de fato procurado os juízes de Berlim, eles teriam lhe dado razão, naqueles meados do século XVIII, em que Frederico mantinha o poder absoluto enquanto discutia filosofia com Voltaire, mas a frase permaneceu como uma feliz expressão, que, destacando-se do conto em que foi inserida, passou a simbolizar a contenção do poder pelo Judiciário.

Desde então, muita coisa aconteceu em Berlim, que se tornou nazista, foi bombardeada, dividida e voltou a se unificar. Sob o nazismo, muitos juízes foram exonerados, mas a maior parte permaneceu e deu sua contribuição ao poder, negando direitos ao moleiro. Ao longo de duzentos anos, muitos juízes passaram por lá, e não sei quantos teriam acolhido sua demanda.

Não de Berlim, mas de Hamburgo, é Claus Roxin, responsável por ter introduzido no Direito Penal moderno o princípio da insignificância, mas hoje mais conhecido entre nós pela Teoria do Domínio do Fato. Roxin diz que os brasileiros não entenderam direito sua teoria e a aplicaram mal, e disso concluo que talvez nossos juízes apliquem o Direito de um modo ligeiramente diferente daquele aplicado em Berlim.

Por isso, embora não me surpreenda, estranho quando aqui ouço que ainda há juízes em Berlim, nessa novilíngua da pós-Democracia, que louva o poder punitivo exercido por inferências. Só não sei se quem assim fala sabe que há um moleiro na história.


Uma resposta

  1. Avatar de Paulo A. Klering
    Paulo A. Klering

    Como é bom ler um texto fundamentado na história e que joga luzes sobre o momento tormentoso pelo qual passa o judiciário nos dias que correm.

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