Eu deveria estranhar. Mas não estranho. E não por ter atingido a idade provecta do diabo, que sabe por velho, mas pelo que tenho visto nestes últimos anos, em que tudo o que era já não é mais.
Os poderes desnudos revelam coisa bem diferente – e mais assustadora – que a vaidade tola do rei que desfilou nu: revelam a decomposição do Estado liberal, cujos princípios foram respeitados enquanto havia certa estabilidade, irmã de uma relativa prosperidade (uso “certa” e “relativa” de propósito, não por pobreza estilística).
O fato é que já há algum tempo se escancararam as profundas mazelas de um mundo cada vez mais disfuncional, em que a profunda pobreza e insegurança da grande maioria contrasta com a opulência indecente de poucos, e a voraz destruição da natureza e poluição da atmosfera anunciam o fim do futuro.
Aquele Estado da separação de poderes que talvez ainda se ensine nas escolas – ou terão os arautos da pós-verdade acabado também com esse conceito? – está cada vez mais rarefeito. E isso porque a ideologia liberal, com seus lustrados pensadores burgueses, se corrompeu, dando lugar a fraudes autoritárias cada vez mais evidentes.
É um fenômeno mais ou menos generalizado, que assumiu feições semelhantes em vários países latino-americanos.
Quando, no Brasil, os liberais acharam que as regras não precisavam mais ser observadas e um impeachment baseado em razões fajutas era o caminho mais curto para voltarem ao governo, abriram as portas para a relativização das regras, que a partir daí passariam a ser utilizadas em proveito próprio.
Regras gerais, que nunca ultrapassaram os limites de uma democracia burguesa restritiva, mas eram regras gerais, entraram em processo de rápida depreciação, único modo de, a pretexto da estabilidade e do crescimento, tomar o poder e fazer passar profundas reformas, que, nesses tempos de Robin Hood às avessas, retiram mais e mais direitos dos pobres, para dar aos podres de ricos.
E o Sistema Judiciário acompanha esse processo. Já no início do movimento, subverteu todos os critérios garantidores do Direito Penal, com isso alterando a relação de forças na disputa político-eleitoral. Do mesmo modo, manteve distância olímpica do golpe, como se nada tivesse a ver com a história.
É aí que chego ao ponto. Não preciso ser velho como o diabo para não me espantar com a adesão – ou seria patrocínio? – do presidente do STF ao pacto pelas reformas. Afinal, o Poder Judiciário deu, nos últimos anos, demasiadas mostras de que já não ocupa o lugar de terceiro imparcial.
É importante a condição de terceiro imparcial: deve estar presente no processo, mas é também essencial na estrutura democrática, em que, justamente por ser o terceiro poder, com a função de julgar, seus membros não são eleitos, para permanecerem equidistantes das partes.
Claro que esse conceito refere uma situação ideal, e amiúde não passa de ficção, mas, em tempos de normalidade, pode ser exercido com alguma eficácia, dentro dos limites da legalidade posta.
Isso já não acontece quando o Estado se torna disfuncional ao poder. Nesse caso, ele precisa ser esvaziado, empobrecido, vilipendiado.
Nesse quadro, o Judiciário poderia ainda ocupar um lugar digno, resistente, de garantidor da Constituição e da legalidade posta, o que seria possível fazer se cuidasse de ficar nesse lugar de terceiro, que a imprensa brasileira se preocupa em preconizar para a Venezuela.
Mas, não, o Presidente do Supremo não resguarda a Corte para apreciar eventuais defeitos no processo de reformas. Também não tem o pejo de, diante de projetos que dividem a Nação e geram resistência justamente entre os mais desfavorecidos, tomar partido.
Até acredito que Toffoli tenha lido Montesquieu, mas sei bem que, se hoje se deparasse com o espectro do pensador francês, se apressaria a dizer não te conheço.
E, para saber isso, não preciso ser velho nem diabo, basta saber um pouquinho do que aconteceu nos últimos anos neste podbre Brasil.
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