Eu odeio a burguesia. Ouvi isso mais ou menos na época em que o Cazuza cantava enquanto houver burguesia não haverá poesia, mas fiquei chocado igual e nunca esqueci, afinal vinha de um cara gentil, amigo de todos e incapaz de fazer mal a uma mosca.
Lembrei agora da frase, ao pensar no paradoxo existencial histórico da esquerda, que, tendo por razão de ser um sentimento generoso de igualdade, era obrigada, no tempo das revoluções, a colocar a violência física como meio de, tomando o poder, transpor esse ideário para um projeto político de construção de uma sociedade solidária. Foi assim na Revolução Francesa, foi assim na Revolução Russa e foi assim em tantos episódios desde antes de 1789 e até bem depois de 1917.
A utopia socialista impunha sacrifícios, e os revolucionários assumiam, com alegria ou abnegação, os meios nada nobres que levariam ao fim redentor. E para quem, com os olhos de hoje, acha isso bárbaro, é necessário lembrar que falo de um mundo de guerras, autocracias, massacres e opressão extrema, em que a violência social estava no cotidiano das pessoas.
O início do século XX apresentou ao mundo uma nova perspectiva de sociedades mais democráticas e inclusivas, e nesse contexto a ideia de violência revolucionária se coloca na origem do grande cisma entre comunistas e social-democratas. Não é preciso lembrar que a banalização em que resultou a adoção da violência como método pré e pós-revolucionário permitiu em tantos lugares a transformação de programas libertários em regimes depravados.
Mesmo assim, e sem esquecer de como a preparação para a violência assassina desumanizou militantes generosos – veja-se o Mercader retratado por Paduro em O homem que amava os cachorros –, uma pessoa comum de esquerda sempre se viu e se verá dividida ao se defrontar com o exercício da violência, que é em si uma negação do seu etos de fraternidade.
Viva la muerte, lema da Legião Espanhola durante a Guerra Civil, nunca poderia ter sido um grito de esquerda, ainda que, no auge dos crimes stalinistas, os próprios comunistas espanhóis tenham se dedicado a eliminar seus parceiros de luta. Viva la muerte só pode ser um lema de direita, porque o etos desta reside na ideia de desigualdade, de competição, de estranhamento e potencial hostilização ao que é diferente, em suma, de negação da alteridade, que facilmente leva ao ódio e no limite à eliminação do outro.
Nas suas anotações sobre a linguagem do Terceiro Reich, Victor Klemperer traz uma interessante ilustração prática dessa distinção, ao falar dos conflitos de rua entre nazistas e comunistas, num momento em que Hitler ainda não havia se consolidado no poder. A frase é de uma médica da Saxônia: “Quando, à noite, depois das manifestações, recebíamos os feridos, eu sabia imediatamente qual o partido de cada um, mesmo se o paciente estivesse despido no leito: os nazistas eram aqueles que estavam com a cabeça ferida, por suas bebedeiras ou porque tinham brigado usando cadeiras, e os comunistas eram aqueles com os pulmões perfurados por golpes de estilete.”
Esse tempo histórico de grandes guerras e grandes revoluções passou, e hoje vivemos, no centro do mundo e na sua periferia ocidental, um período de relativa paz e democracia. Não sei quanto tempo isso durará e se conseguiremos sustentar os frágeis marcos civilizatórios a que chegamos, em que até mesmo a alternância democrática é possível; talvez seja apenas um interlúdio histórico, no qual conflitos como os que envolviam nazistas e comunistas dificilmente ocorrerão.
Mesmo assim, as manifestações de rua que se veem no mundo têm mostrado a distinção entre a paixão igualitária da esquerda e o rancor violento da direita, que aparece em versões mais radicais, como os skinheads espancando homossexuais, mas também de modo generalizado na aversão aos imigrantes, tristemente simbolizada por milhares de corpos afogados no Mar Mediterrâneo.
E, quando penso na xenofobia europeia, não consigo deixar de fazer a conexão com o preconceito de uma certa classe média urbana brasileira aos nordestinos. Do mesmo modo, o exemplo de Klemperer me faz pensar em como essa mesma classe média encara seus opostos políticos, e, quando vejo seus escritos e suas expressões de ódio, enxergo os estiletes prontos a perfurar pulmões.
A diferença é que, embora haja candidatos a tanto, não surgiu ainda no Brasil um movimento orgânico que dê consistência política a esse sentimento latente: é um ódio à espera de quem o instrumentalize.
Mas o ódio está aí. É o ódio da direita. O ódio que é de direita. E perto dele o ódio do meu amigo à burguesia não é nada.
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