Navegar é preciso. A expressão não tem o sentido de necessidade que lhe costuma ser dado, mas é assim que me vem quando o otimismo da vontade parece esmagado pelo pessimismo da razão e o seguir em frente quase não passa de um ato obstinado. E, já que sua acepção vem mesmo corrompida, termino de subvertê-la: navegar é preciso, justamente porque viver é preciso. Se quem não navega não vive, sigo navegando.
Não se trata de opção, é necessidade. Ainda que seja cada dia mais pessimista, preciso me manter do lado de cá da fronteira que separa o pessimismo da descrença, esta sim demolidora de qualquer vontade que reste.
No entanto, como crer numa humanidade que destrói o planeta, sem respeitar as demais espécies e nem mesmo a próxima geração, que mantém bilhões de pessoas na miséria e continua produzindo armas utilizadas em guerras periféricas nas quais matamos os semelhantes?
Ah, mas soubemos construir a democracia. Ao longo de anos me aferrei a essa ideia de que somos capazes de sustentar um sistema que respeite a maioria e observe as regras do jogo. Não me acusem de ingênuo, porque sei bem do quanto há de ilusório nas democracias, do quanto elas servem para dar uma aparência de normalidade à dominação.
Aliás, elas são funcionais ao sistema e fazem o perverso parecer natural, como verdadeiras ditabrandas, para utilizar o infame neologismo da Folha de São Paulo.
Mesmo assim, a ilusão de que nelas se respeitam as regras do jogo dá o mesmo alívio que uma lufada de ar dá a quem se sufoca. A cada momento eleitoral, em que é alçado ao cargo aquele que tem mais votos, as vemos como um jogo virtuoso, pelo qual damos um passo à frente na construção da civilidade.
Mas, como pensar assim logo depois de um golpe? Como pensar que a democracia pode ser virtuosa quando ela é só um simulacro? De que modo podemos acreditar nela se os atores que a violaram estão aí e ao menos por uma geração mais povoarão nossos parlamentos como vestais?
Mas é ainda pior: se assim falo agora, não estou apenas me manifestando como brasileiro desiludido pela quebra das regras constitucionais, depois de termos honrado por quase trinta anos o desejo democrático de 1988; faço-o com a convicção de que o que aqui aconteceu é da natureza do sistema, e pode acontecer do mesmo modo em qualquer outro lugar, até mesmo nos Estados Unidos, onde, aliás, em 2000 uma Suprema Corte de maioria republicana deu a presidência a Bush, ao proibir a recontagem de votos na Flórida.
Sob esse aspecto, é até injusto acusar os golpistas brasileiros de atores de uma república bananeira: o que eles fizeram está no script.
É esse script a causa da descrença, o depressor de qualquer fé democrática, porque está definido que a democracia só pode sobreviver enquanto não põe em risco o próprio sistema. Por isso, não consigo me animar neste final de semana de eleições. Talvez como nunca me sinta partícipe de um ritual vazio de significado, vazio de valores.
No entanto, sigo apostando na democracia. Porque navegar é preciso.
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A ilustração é de Willem van de Velde II, Um navio em alto mar apanhado pela borrasca.
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