Sou de um tempo em que Gramsci gozava de grande fama, muitos carregavam seus livros e alguns até os liam. Na esquerda, evidentemente, porque, como hoje, para a direita ele era um perigoso comunista, esconjurado diante da simples lembrança do nome.
Naqueles tempos gramscianos, esperava-se das pessoas conscientes a capacidade de superar o pensamento abstrato, pensar criticamente o mundo e ter sobre ele uma atuação transformadora, o que as tornaria intelectuais orgânicos.
Tinha um amigo, leitor voraz, que cunhou uma nova designação para o intelectual tradicional, criticado por Gramsci: intelectual mineral. Referia-se, provavelmente, a um subgênero do intelectual tradicional, que, aferrando-se a um enunciado qualquer, e com a empáfia de quem o formula com a exclusividade decorrente de sua invulgar erudição, o brandia como petição de princípio contra a qual nenhum argumento ou dado da realidade podia ser contraposto. A primariedade do raciocínio escondido sob um revestimento lustroso fazia mesmo parecer que pensava como uma pedra.
A jocosa expressão chegou a ser destinada a alguns interlocutores mais renitentes, que se fechavam em argumentos tacanhos, e era um modo de encerrar discussões desde o início fadadas a um impasse estéril.
O tempo passou, não sei se fui eu que esqueci Gramsci – não deveria – ou se ele saiu de moda – também não deveria. Do mesmo modo, como acontece ao longo da jornada, perdi de vista o amigo, o que não me impede de ocasionalmente lembrar dele, às vezes porque lhe queria bem, mas mais quando, o que não é raro, tropeço em algum desses formuladores pedregosos.
Nem sempre os percebemos à primeira vista, dado seu mimetismo: são fulgurantes, e por isso podem ser confundidos com mentes brilhantes. Muitos exibem, como atestado de infalibilidade, uma vasta bibliografia de doutrinadores de prestígio, que eles conhecem melhor que ninguém, às vezes acompanhada de conceitos inalcançáveis pela pobre língua portuguesa, por isso enunciados no original – há um ranking por língua, e evidentemente as expressões em alemão estão no topo.
Então, com aquela profunda expressão, tipo la garantia soy yo, lançam sua sentença, imune a qualquer tentativa de refutação. Ouvi, há dois anos, proferida por uma sumidade, a expressão digna do Conselheiro Acácio: impeachment não é golpe porque está previsto na Constituição. E a expressão passou a ser repetida à exaustão, porque o que interessa não é a validade do pensamento, mas o fim a que se destina.
Se volto dois anos, é porque agora ouvi uma variante: intervenção federal em Estado é um instrumento democrático, porque está prevista na Constituição. E o professor que a formula passa a recitar uma aula de Direito Comparado, mostrando como outras Constituições preveem mecanismos semelhantes. Na sua didática explanação, invoca os maiores constitucionalistas, fazendo-me lembrar do Segundo Mandamento.
Sim, intervenção nos Estados está prevista na Constituição. Impeachment também está. Por isso pode, é constitucional. As instituições estão funcionando, arremata, o resto são considerações político-ideológicas.
E é assim que justifica o uso de uma Constituição democrática para o enfraquecimento da democracia. Para ele, é irrelevante saber se tem fundamento a justificativa apresentada para a intervenção federal: isso não incumbe aos juristas. Também não se preocupa quando são anunciados mandados de busca e apreensão coletivos ou quando o comandante do Exército diz sinistramente que não quer uma futura Comissão da Verdade: alega que medidas excepcionais exigem condições excepcionais de cumprimento.
É otimista e desafia o interlocutor descrente, dizendo que os moradores honestos da favela agradecerão pela presença do Exército (quando assim fala, penso que tudo sempre se repete, porque lembro do doutor em Direito Internacional, evidentemente mineral, que justificou a invasão do Iraque e previu que em um ano os iraquianos agradeceriam a seus benfeitores americanos).
A lembrança do Iraque me faz recuar no tempo. Se recuar mais um pouco, voltarei à nossa Ditadura, à época em que meu amigo batizou de minerais esses intelectuais, que então também cantavam loas às nossas sólidas instituições.
Mas há um senão nessa divertida provocação: a não ser que imaginemos pedras gritarem, chamá-los de minerais não faz justiça ao seu inconfesso engajamento, à cumplicidade decorrente de conferirem sua chancela de legitimidade a tais ações.
De qualquer maneira, não deixa de ser adequada à autoimagem de quem, de tal maneira se manifestando, diz-se neutro, como se tivesse pH igual a 7.
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A imagem é da Folha de São Paulo, e refere-se a um fato que não integra o raciocínio do intelectual mineral.
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