Às vezes me ressinto de não conhecer outras sociedades. Nem sei se isso seria possível, porque o conhecimento de que falo provavelmente não se obteria numa rápida viagem turística ou pela via da literatura.
Tenho, por exemplo, a impressão de que hoje há mais ódio no mundo, mas não sei se é um fenômeno que se manifesta com a mesma intensidade nos seus quatro cantos nem se o móvel do ódio é sempre análogo.
Penso que é.
Tenho algumas hipóteses, que talvez não ultrapassem o óbvio, mas acredito que servem para entender alguma coisa.
Parece claro que as pessoas estão muito mais inseguras hoje que há trinta ou quarenta anos. E não falo só do sentimento de insegurança pessoal, do medo de assalto, homicídio ou estupro, falo principalmente do temor existencial, vista a existência como sobrevivência sob certas condições econômicas e sociais.
O fato é que, apesar da Guerra Fria, havia no mundo de quarenta anos atrás uma certa estabilidade na vida das pessoas. Nos países da chamada Cortina de Ferro faltava liberdade e democracia e muitas vezes havia escassez de mantimentos, mas não havia temor sobre as condições de sobrevivência nesses lugares relativamente igualitários. Já no Ocidente, principalmente nos países mais ricos, mas de algum modo também na periferia, o Estado Social zelava por saúde, educação, aposentadoria. Mesmo desigual a sociedade capitalista, era menor a insegurança das pessoas acerca das condições materiais de sobrevivência.
O fato é que o tal equilíbrio se esboroou, a União Soviética ruiu e o liberalismo tomou conta do mundo.
Há algumas décadas a renda e a propriedade se concentram em todos os lugares, aumentando o exército de pobres e miseráveis. É significativo, por exemplo, o fato de que em dez anos o número de moradores de rua de Nova Iorque dobrou, chegando hoje a 60 mil.
A voracidade do capital avança sobre o próprio Estado, e o Brasil de hoje é um excelente exemplo de como aos poucos – ou rapidamente – ele se demite de oferecer saúde, educação e aposentadoria, no mesmo ritmo em que se retira da própria economia.
Hoje está mais difícil a uma pessoa se manter razoavelmente estável no mercado de trabalho, sem temores em relação à perda de emprego ou ao futuro abandono por falta de uma aposentadoria digna ou de atendimento médico ou hospitalar na doença.
Caem regulamentações, cai a relativa estabilidade, renda e propriedade se concentram, a competição pela sobrevivência se torna mais selvagem. De algum modo, o liberalismo triunfante nos leva de volta ao estado de natureza hobbesiano, em que o homem é o lobo do homem.
Cada vez mais, competimos, e nossa sobrevivência depende da derrota do próximo. Todos são potenciais adversários e estamos prontos para derrotá-los.
Se isso acontece no âmbito individual, certamente também ocorre no plano social. Vivemos um mundo distópico, em que crescentes multidões de excluídos ameaçam nosso bem-estar, e nosso medo logo se converte em ódio.
Na Europa podem ser os imigrantes, essas hordas bárbaras que ameaçam islamizar o continente. No Brasil, não precisamos de excluídos importados, porque os temos aos montes. Também não queremos incluí-los, porque cada emergente que vemos no aeroporto ou frequenta nosso supermercado ocupa parte do nosso próprio espaço, que com tanto sacrifício lutamos para ser preservado.
Não os queremos próximos, queremos que fiquem no seu lugar, honestos cidadãos de periferia. Ganhem seu honesto salário, para que possamos apontá-los como exemplos. Afinal, nesse mundo desigual não cabem todos, e, se cada vez menos gente concentra as riquezas do mundo, isso torna mais difícil mantermos nós próprios a condição tão duramente conquistada.
Ocasionalmente – muito ocasionalmente mesmo –, quando algum pobre consegue ascender para a classe média, o recebemos como nosso, ao mesmo tempo em que o celebramos como exemplo das possibilidades oferecidas a alguém que tem méritos. Temos assim argumentos para mostrar aos milhares que não ascenderam a sua própria incapacidade. Mas, de regra, não os queremos: sua ascensão é um risco para nós próprios.
O problema é que nos ronda um espectro, e não é o de uma classe revolucionária que aspira ao poder. O espectro é o da barbárie, da violência crescente, e agora sim trato do assalto, do homicídio, do estupro.
Entre nossos inimigos, estão os criminosos. Há criminosos de todos os tipos, e eles cada vez mais nos ameaçam. Prender não está adiantando: se tínhamos 90 mil presos em 1990 e hoje temos mais de 700 mil, ainda assim nos vemos mais inseguros hoje do que décadas atrás.
E não adianta dizer que hoje, para cada 300 brasileiros, um está na cadeia: queremos prender mais e mais – secretamente, ou nem tanto, preferimos que morram – e nossa sensação de medo só faz aumentar.
E, com o medo, o ódio.
Temos medo, temos ódio, temos inimigos.
O medo de que alguém tire nosso emprego é um medo genérico, em que não vemos nosso adversário; o medo de que alguém emancipe os pobres é bem mais palpável, e já podemos indicar o inimigo (descobrir que ele é corrupto pode ser um alívio, porque o combateremos por motivos confessáveis); já o medo de que caia sobre nós a violência da criminalidade é permanente, e não saímos mais sozinhos à rua, esse território conquistado pelo inimigo.
Não nos interessa saber por que 90 mil viraram 700 mil e mesmo assim corremos mais riscos: só sabemos que eles são nossos inimigos, que os odiamos.
E odiamos também quem os trata de um modo mais benevolente do que aquele que um inimigo merece. Se um juiz conversa com os presos e é por eles respeitado, vira também inimigo.
O juiz que prende é dos nossos, é nosso amigo; o que os trata bem ou os solta é inimigo, e assim deve ser tratado.
Este juiz não serve para ser endeusado, não lava nossa alma justiceira. Não, precisamos que a Polícia Federal o investigue, que se deflagre contra ele uma operação midiática dessas que satisfazem nosso apetite punitivo, que os jornais busquem seus vínculos com o crime organizado.
Inimigo com certeza ele é, falta apenas a prova de que é também criminoso. Mas isso é apenas um detalhe.
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Na ilustração, detalhe da Guernica de Picasso.
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