Se bem lembro, a expressão estelionato eleitoral teve sua estreia nas eleições de 1986. Surfando na popularidade do Plano Cruzado, o PMDB elegeu mais da metade do Congresso, mas a contagem dos votos nem havia encerrado – na época, levavam-se dias para contar as cédulas de papel – e o governo descongelou os preços, acabando com a ilusão de estabilidade econômica.
Não foi pouco, porque o Congresso então eleito tinha como tarefa escrever a Constituição, que veio a ser promulgada em 1988. Ainda bem que o PMDB de 1986 não era o de 2017, e sob muitos aspectos a Constituição, que o peemedebista Ulysses Guimarães apelidou de cidadã, consagrou o Estado democrático e trouxe avanços notáveis em matéria de direitos individuais e sociais.
De qualquer maneira, o certo é que a maioria então obtida – o PMDB elegeu também 22 governadores – resultou do prestígio de um plano econômico que fazia água, mas foi mantido até o dia seguinte à eleição.
Esse foi provavelmente o caso mais notável de estelionato eleitoral, mas a expressão se eternizou, e não há eleição em que logo em seguida o eleito não seja acusado de ter traído seus compromissos eleitorais.
Talvez isso seja inevitável, e o candidato absolutamente sincero esteja desde logo condenado a perder. Como dizem que a única coisa feia na política é perder eleição, os candidatos acabam prometendo coisas bem diferentes das que farão.
Claro que há diversos modos de vender ilusões. É mais fácil dizer a verdade quando o candidato tem um programa de distribuição de renda, assim como é mais fácil não mentir quando a proposta é de expansão da economia. Nesses casos, geralmente a mentira está no excesso: promete mais do que pode cumprir ou, porque a arrecadação não será a esperada, acaba por não ter condições de cumprir tudo o que antes parecia possível.
Já os programas de austeridade são invariavelmente escondidos do eleitor. A retirada de direitos não pode ser objeto de promessa, sob pena de derrota.
Mas nada disso interessa quando a assunção ao poder se dá sem voto. Por exemplo, pela via do golpe. Nesse caso, não há compromisso com o eleitor. Ou até há, mas é com um outro tipo de eleitor, e não é nem mesmo com a maioria dos que vestiram verde-amarelo nas ruas, mas com as grandes corporações e a grande mídia.
Sempre é bom lembrar daquele ato falho de Temer, quando, em fala a investidores dos Estados Unidos, disse que o impeachment de Dilma decorreu da sua não aceitação de um novo programa, elaborado bem depois das eleições de 2014. Depreende-se da fala que a permanência estava condicionada ao abandono do programa pelo qual a presidente havia sido eleita.
Mas, se o assunto é vender gato por lebre, há ocasiões em que isso se dá num nível superior. Às vezes, o que resulta de eleição não é só a substituição do plano de governo prometido pelo plano de governo implementado, mas a própria alteração da estrutura do Estado, ou mesmo seu desmonte.
Nesse caso, o que o governo 171 faz não é algo que possa ser desfeito por um próximo governo, porque é um caminho sem volta. Se forem vendidas as grandes estatais, se for aprovada a reforma da previdência, se acabarem os direitos trabalhistas, isso são coisas que não poderão ser recuperadas.
Se, no Rio Grande do Sul, for sacramentado o fim das fundações, será obra de um governo que não propôs isso como projeto, mas, ao fazê-lo, cometerá muito mais do que um estelionato eleitoral: desmontará uma estrutura de Estado que levou décadas para ser construída. Tudo isso sem uma justificativa razoável.
Tanto no plano federal como no estadual, é mais do que mero estelionato, porque se propõem medidas de desmonte que se tornarão irreversíveis.
Quando vejo isso, lembro das aulas de Direito Comercial, em que o professor falava em dolus bonus e dolus malus, explicando que no primeiro caso não havia propriamente um vício, mas apenas um dourar de pílula. Assim, todas as virtudes fantasiosas de um apartamento mostrado por um corretor de imóveis não anulariam a venda se não houvesse um efetivo prejuízo ao comprador.
Não sei o que aconteceu com o dolus bonus quando entrou em vigor o Código de Defesa do Consumidor, mas isso não vem ao caso: o que hoje acontece no Brasil é, com certeza, dolus malus.
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Na imagem, Isaac abençoa Jacó, de Gioacchino Assereto.
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