A placa era igual a tantas outras, e por isso não chamaria a atenção de um cético. Dizia que mãe Francisca joga búzios, cartas e tarô, resolve problemas do amor, saúde e dinheiro. O que ela tinha de diferente e me fez acreditar que mãe Francisca talvez pudesse mesmo ajudar seus clientes foi a última frase: 50 anos de experiência.
Pensei nos bons conselhos que ela poderia dar aos desesperados que a procuram, somente lançando mão daqueles cinquenta anos, em que atendeu milhares de pessoas na busca de consolo para suas aflições.
Isso foi domingo passado, pouco antes da forte tormenta, que derrubou árvores, entortou telhados e alagou ruas. Felizmente, cheguei em casa minutos antes de um relâmpago riscar o céu de alto a baixo. Escurecido o apartamento, assisti da janela a natureza dar seu terrível espetáculo.
Na segunda, passei por tapumes caídos e vidros quebrados. Na esquina da Perimetral com a Ipiranga, jazia uma árvore de tronco grosso, arrancada inteira do chão, que não segurou as raízes rasgadas; ao lado, outra árvore permaneceu fincada, mas já sem os galhos, que no chão faziam companhia à árvore caída.
Quando, horas depois, soube do suicídio do Reitor Cancellier de Olivo, jogado do alto do Beiramar Shopping, imaginei a árvore tombando diante dos ventos irresistíveis. Não conhecia o reitor, sabia de sua prisão porque deu no jornal, também do jornal sabia que fora solto. Entre os inúmeros textos que diariamente nos interpelam, tinha visto algumas chamadas que falavam da arbitrariedade da prisão, do sensacionalismo da mídia, mas não me chamaram a atenção.
Minto: chamaram, sim, a atenção. Mas deles me desviei, do mesmo modo como tenho me desviado da proibição de uma peça teatral, do discurso de um general, do projeto de lei que proíbe livros, da agressão a homossexuais.
Não desvio dos textos por não me interessarem. Desvio porque têm vindo em profusão tal que já não dou conta deles, tornaram-se banais. Tão banais quanto os autores das proezas, pessoas medíocres, que se veem como personificações da virtude ética, combatentes do pensamento binário, que veem o mal em tudo o que não se aproxime de sua moral reacionária. Muitos deles nem ao menos têm noção do mal que causam, ao buscarem a purificação nacional pela perseguição de tudo o que não se encaixe nos seus pobres conceitos.
Por isso, se tanto desvio, cada vez mais me preocupo com a multiplicação das notícias, e tento refletir sobre elas. No caso de Cancellier, o suicídio me chacoalhou, e tentei entender o que se passava. Li artigo por ele publicado em O Globo dias antes, ouvi os discursos emocionados do Desembargador Lédio Rosa de Andrade e do ex-Senador Nelson Wedekin na Sessão Fúnebre da UFSC, depois li artigo de Roberto Romano.
Nelson Wedekin fala das mãos visíveis e invisíveis que empurraram o reitor das alturas para a morte, das mãos dos que só têm a si mesmo como honestos e virtuosos, senhores do bem e do mal, da reputação de quem mal conhecem e que não têm curiosidade de conhecer; Lédio Rosa de Andrade lembra dos ditadores de espírito, que nunca morrem e estão sempre aí, esperando a hora de voltar.
Para os ditadores de espírito, segundo ele, “cidadãos honestos”, com convenientes aspas, Roberto Romano lembrou o que fazia o bispo de Marília na época da Ditadura: ao receber delatores que erguiam o dedo contra comunistas e corruptos pedia o seguinte: “o senhor vá ao Cartório, escreva a sua denúncia, reconheça a firma e me envie, para que eu a estude”.
Não há ditadura no Brasil. Não nominalmente. Mas cada vez mais se promovem índex, mais se apontam os dedos, mais se invocam práticas autoritárias.
Pensei no desespero que levou o reitor a cometer esse ato. Ele não sofreu tortura física, mas foi exposto a humilhações e à execração pública e, no curto bilhete que deixou, disse que sua morte foi decretada no dia em que foi afastado da universidade. Mesmo sem tortura, não pude deixar de lembrar de Frei Tito, vítima da Ditadura, para quem a vida se tornou impossível após os suplícios sofridos.
Talvez Cancellier e Frei Tito sejam tristes paradigmas de diferentes modos de exercício do poder opressivo. Numa conversa cujo assunto inicial foi o suicídio do reitor, seguindo pelo clima de intolerância e perseguição cada dia mais naturalizados em nossa vida, ouvi uma pessoa se perguntar como poderia ocorrer hoje uma quebra da democracia no Brasil. Quem assim falava tinha a percepção de que há algum tempo nossa democracia se rarefez e se perguntava como seria um novo golpe militar.
Adivinhar o futuro é sempre difícil. Na verdade, adivinhar não é propriamente a palavra, porque, para pensar hipóteses plausíveis, é necessário um conhecimento histórico e uma boa leitura da realidade. Foi na tentativa de entender o que acontece, que a conversa se estendeu pelo que muitos chamam de pós-democracia, que em tantos lugares nem ao menos necessita de golpes militares e age com uma aparência de legalidade, não produzindo um Frei Tito, mas um Cancellier.
Foi nesse passo que pensei nos diferentes tons das nuvens que nos ameaçam. E imaginei mãe Francisca como uma historiadora, não porque esperasse dos seus búzios a predição sobre nosso futuro, mas para que, com sua longa experiência, ao menos mostrasse aos incautos que, misturados aos ditadores de espírito, hoje brincam de acusar, a escuridão que recobre o horizonte.
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