Em Curitiba, mais de duzentos lares foram destruídos pelo fogo após ação policial; na Paraíba, dois líderes de uma ocupação do MST foram executados. Isso aconteceu em intervalo de poucas horas, dois dias antes da comemoração dos 70 anos da Declaração Universal de Direitos Humanos.
Faz tempo que isso não é novidade num país antes dito pacífico, mas onde de fato nunca foi abolida a escravidão: por isso, na semana que se seguiu a violência continuou, e o Pará presenciou o fuzilamento de um líder do MST na quinta e de outro no sábado.
Por já não ser novidade, alguém poderia até deixar de associar essa violência ao resultado das últimas eleições. Mas é necessário fazê-lo, seja pelo resultado eleitoral propriamente dito, que coloca no comando da Nação alguém que desde sempre, e na campanha eleitoral em particular, apoiou a perseguição aos movimentos populares; seja pelo fenômeno social que levou a esse resultado, até pouco tempo inimaginável.
São as duas faces da moeda: de um lado, o apoiador das milícias, que em seus comícios estimulava a perseguição e fuzilamento dos adversários, obteve votos suficientes para se eleger, o que demonstra um acolhimento ou, o que não é muito diferente, uma despreocupação de milhões de pessoas em relação ao seu discurso de ódio; de outro, ao vê-lo eleito, seus apoiadores se sentem autorizados a cometer a violência por ele pregada.
Ainda que, naquela sua característica peculiar de não assumir a responsabilidade pelas consequências de seu discurso – basta ver como, ainda em campanha, diante do homicídio de travesti, disse não ter culpa por excessos praticados por seus apoiadores –, dê uma improvável guinada política, descumprindo sua sinistra promessa de campanha, isso não será suficiente para amainar no imaginário coletivo a mensagem dele recebida.
A autorização à violência está clara e encontra campo fértil numa sociedade atemorizada, que, num mundo de desigualdades sociais crescentes, sofre com os efeitos das retiradas de direitos, mas se convence com os discursos que atribuem todos os males aos pobres.
No mais, para além dos discursos, a pauta de destruição dos Direitos Humanos aparece clara na nomeação de ministros de áreas sensíveis: para a Agricultura, ministra representante da bancada ruralista, comprometida com o avanço das fronteiras agrícolas, a indústria do agrotóxico e a perseguição a indígenas e agricultores pobres; para o Meio Ambiente, ministro com histórico de ser réu em ações ambientais, para quem aquecimento global e desmatamento não são coisas importantes; para os Direitos Humanos, ministra ligada ao fundamentalismo religioso, que pretende uma contrarrevolução cultural, acha importante as mulheres ficarem em casa e agride a cultura indígena.
Enquanto muitos se distraem com as visões místicas da ministra, multiplicando memes de goiabeiras, e outros a defendem, se condoendo da infância de abusos e enaltecendo falsas virtudes, suas propostas, como as dos demais ministros, nada lembram a defesa dos Direitos Humanos, mas abrem caminho para mais violência, uma violência prometida e autorizada pelo voto.
Nessa mesma semana, comemorou-se outro aniversário, o dos 50 anos do AI5, que talvez tenha mais a ver com o espírito dos tempos. Mas há uma diferença sensível com os tempos que correm, e temo que seja para pior: nos anos mais violentos da Ditadura, aqueles do ame-o ou deixe-o, a violência política era monopólio do Estado, praticada em seus porões; agora a violência estatal e a violência social caminham de mãos dadas, se alimentando reciprocamente no discurso de ódio e exclusão.
É por isso que, cada vez mais, é revolucionário defender os Direitos Humanos, algo que parecia tão natural há 70 anos, e se fez tão simbólica a comemoração.
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Os dois bastões da foto que ilustra o texto estão expostos na vitrine de uma loja de armas localizada a poucos metros de um quartel da Brigada Militar e do Comando Militar do Sul.
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