Algumas coisas não estão claras. Não está claro se a Globo ressuscitou o jornalismo investigativo ou se está apenas usando seus fortes argumentos para convencer Bolsonaro de que talvez o mais prudente seja continuar a lhe destinar uma grana preta em publicidade.
Também não está claro se o que vem sendo revelado é apenas extorsão de salário de assessores, o prosaico Rachid, tão comum no baixo clero, ou se há coisas mais sérias, como envolvimento com o crime organizado, em particular as milícias.
Os indícios de crime são fortíssimos, mas não parece que, como pensam alguns, o Governo já acabou logo em seu início: há muita gente disposta a matar no peito e a própria Globo pode a qualquer momento se dar por satisfeita.
Além disso, não é de se desconsiderar que, embora muitos eleitores de Bolsonaro tenham dado seu voto por rejeição ao PT ou à esquerda e outros foram iludidos de que o grande problema do país era a corrupção, nos últimos anos se consolidou um projeto de direita, que encontrou nele sua expressão pública, e dificilmente a camiseta da seleção será tirada por coisas tão sem importância como alguns milhões que circularam nas contas da família: isso só é crime quando acontece com os outros.
Ademais, mesmo que a desventurada família venha a ser abandonada no caminho, há um vice militar, cercado por um aparato militar, com capacidade política e sede de poder, que pode perfeitamente se apresentar como alternativa constitucional, mantendo a coesão do polo conservador e, com mais eficiência, dando contorno técnico a um governo iniciado com a marca da improvisação e do folclore.
Aliás, trata-se de hipótese com melhor possibilidade de sucesso, dada a perspectiva de um governo em que prevaleça a racionalidade burocrática, evidentemente alicerçada num duplo autoritarismo: aquele próprio da tradição militar brasileira e o que vem sendo formulado como pós-democracia, tão bem aplicado a partir da Lava Jato e do golpe que destituiu a presidente eleita.
Mas, se tudo está ainda por acontecer e o futuro é tão incerto, há coisas bem mais palpáveis, que já acontecem, independentemente do aparente desgoverno.
Está em pleno andamento em nosso país a Doutrina do Choque, bem explicada por Naomi Klein. É uma voraz aplicação do capitalismo do desastre, que entra em campo para atacar sociedades traumatizadas, e por isso incapazes de resistirem a brutais alterações estruturais em favor do projeto neoliberal.
Também não está clara a medida em que as mudanças ocorrerão. A reforma da previdência, por exemplo, pode vir a enfrentar resistência nos estamentos estatais, principalmente os militares que hoje são governo, na medida em que venham a ser chamados a participarem das perdas.
Outras coisas parecem bem mais fáceis, por não encontrarem resistência no governo. Assim, mesmo que se diga que os militares divergem dos ultraliberais por sua visão mais nacional e estatista, isso parece não ser suficiente para evitar que continue a entrega do pré-sal ou da Embraer.
Pior é a situação daqueles setores em relação aos quais se combinam a voracidade econômica e a rejeição ideológica. É por isso que parece não haver obstáculo à extinção da Justiça do Trabalho ou, num outro plano, à entrega da Amazônia a mineradoras e ruralistas e à evangelização, expulsão e assassínio de indígenas.
A defesa da Amazônia e dos indígenas, assim como o alerta sobre o aquecimento global e um provável desastre ambiental, são coisas de comunista, e não há quem no governo se disponha a botar freio na ofensiva selvagem que já está acontecendo, porque nisso estão todos de acordo.
Os milhões de reais que transitaram na conta de Flávio Bolsonaro não interferem nisso. Se interferem, talvez seja mesmo para distrair.
O Governo Bolsonaro pode ter iniciado em crise, mas tem força suficiente para permitir que isso aconteça, mesmo porque acontecerá com sua inércia, com a autorização dada já em campanha e agora com o desmantelamento das políticas e órgãos de proteção.
Por isso, é provável que, quando os brasileiros despertarem do profundo transe em que caíram, o capitalismo do desastre já tenha feito seu trabalho.
Deixe uma resposta