Corrupção e eleições

Corrupção como sistema
Quando se fala em corrupção, é necessário sempre lembrar que há dois lados: o que paga e o que recebe. Simplificadamente, grandes empresas pagam e agentes públicos recebem. E isso não é uma anomalia do sistema; pelo contrário, é como funciona o capitalismo.
A ética do grande capital é a do lucro, e ele sempre se acerca do poder formal, para que as regras lhe sejam favoráveis. Isso pode se dar para atender interesses de uma empresa individual, como livrá-la de um processo por sonegação fiscal; para um setor inteiro, como obter benefícios fiscais em determinada atividade econômica; ou para o capital como um todo, como quando se retiram direitos trabalhistas.
A corrupção é endêmica, e sistematicamente utilizada pelo capital para atingir os seus objetivos. Existe em todos os países e em todas as épocas, mas não costuma ser percebida. Algumas práticas de corrupção são mesmo toleradas e regulamentadas. Veja-se a prática do lóbi e a do financiamento privado de campanha eleitoral. Há também as práticas semiclandestinas, como a do caixa dois eleitoral, que sempre se soube existente no Brasil e até pouco tempo atrás era tolerado, talvez como um mal inevitável.
Alguns países de democracias mais evoluídas apresentam índices de corrupção mais baixos que os brasileiros, mas não estão livres dela. Outros apresentam uma corrupção ainda maior, e certamente os Estados Unidos, com suas campanhas eleitorais milionárias, são um exemplo.
Evidentemente, trata-se de processo de duas mãos, e o tamanho da corrupção, que é definido pelas leis de mercado, tende a aumentar quando o risco é menor ou quando o benefício é maior, porque os agentes públicos corruptos podem cobrar valores crescentes para venderem seus préstimos.
Corrupção da esquerda
É fato sabido que historicamente, quando chega a governar, a esquerda costuma ser atacada por duas frentes: o antigo discurso de defesa da liberdade, contra os riscos do comunismo, que recentemente assumiu entre nós o viés de bolivarianismo; e o combate à corrupção.
Como a construção do discurso anticorrupção, feito para seduzir a classe média moralista e conservadora, parte principalmente de setores do próprio capital, em particular a grande imprensa, ele oculta o caráter sistêmico do fenômeno e constrói a narrativa sobre casos exemplares.
Trata-se de um discurso eficaz, porque, avessa a um pensamento mais complexo e presa de seus preconceitos ideológicos, essa classe média conservadora, que se mobiliza pela moralização do país, vê em pedalinhos ou um triplex, diariamente expostos no horário nobre, mais corrupção que os milhões de reais injetados nas campanhas eleitorais dos parlamentares em que ela própria vota.
Mas essa circunstância não pode servir de justificativa para discursos absolutórios sumários. Nessa disputa de dois polos ideológicos, é justificável medir o tamanho da roubalheira de cada um ou o destino de certas arrecadações – há, por exemplo, diferença entre enriquecimento individual ou arrecadação partidária – mas a mera justificação de todas as ações da esquerda apenas contribui para sua vitimização e a falta de uma autocrítica necessária.
Compreendo que há situações-limite, quase imposições objetivas a entrar no jogo. Um exemplo disso, que se revelou no mensalão, é o de, sendo governo, passar a ser chantageado por um Congresso fisiológico, que se nega a votar qualquer medida, exceto se obtiver benefícios. É bom lembrar que, nesse plano, e sem nenhum escândalo, a imprensa noticiou agora o uso da caneta por Temer para aprovar as medidas preconizadas pelo grande capital.
Outra situação compreensível é aquela em que, sob pena de perder eleições, a esquerda entra no mercado de doações de campanha, buscando também doações milionárias, seja oficiais ou de caixa dois.
Nesses casos, o pragmatismo fala mais alto e o preço de buscar o poder é pago como cumprimento das regras do jogo. É bem isso: para vencer as eleições, você precisa jogar o jogo; para governar, você precisa jogar o jogo; e o nome do jogo é corrupção.
Mas o reconhecimento dessa condição de refém de um sistema não afasta a responsabilidade de um PT, que, no governo, tomou algumas medidas de controle, mas foi ambíguo ou pouco empenhado quando se tratava de assumir lutas fundamentais, como a reforma do sistema político, um dos caminhos necessários para reduzir as condições para o exercício da corrupção.
Além disso, não conseguiu assegurar que seus quadros se mantivessem imunes à tentação do enriquecimento. Por isso, ao lado de tantos antigos dirigentes, que mantiveram as mesmas vidas modestas de antes, também presenciou situações de enriquecimento individual, que não soube ou não quis enfrentar.
Corrupção como pretexto
Se a negativa à absolvição sumária da esquerda é essencial para evitar uma postura de autojustificação e de perpetuação de práticas antirrepublicanas, essa crítica necessariamente precisa caminhar par e passo com o enfrentamento à criminalização seletiva e à instrumentalização do discurso de combate à corrupção no jogo do poder.
O golpe que tirou Dilma teve como pretexto a corrupção de seu partido e seu governo, embora juridicamente tenha se sustentado na falsa e vazia tese das pedaladas fiscais. Já a operação Lava jato, que iniciou sob a crítica solitária de criminalistas, acabou enveredando por um caminho que tanto seus defensores como seus críticos diziam terminar em Lula.
O ilegal vazamento de conversas grampeadas entre Dilma e Lula foi provavelmente o marco a partir do qual o que antes era fundamentalmente uma, ainda que atípica, operação investigativa-judicial passou a ser visto por muitos como uma tentativa deliberada de interferir no jogo político da Nação.
Se hoje, a partir de Brasília e não de Curitiba, se chega a atores importantes do outro campo, talvez isso possa ser tomado como evidência de um projeto mais amplo de investigação, que enfrente a corrupção sem poupar um dos lados da polarização ideológica. Embora continuem presentes as críticas de quem vê abusos na produção das provas e na sua divulgação seletiva, a aparência que resulta dos vazamentos envolvendo Temer e Aécio é a de uma democratização (leia-se com aspas) das investigações.
Claro que tudo é ainda uma incógnita. O processo político recente contou com três atores políticos fundamentais – Congresso, Judiciário e Mídia –, cujas ações serviram objetivamente, em alguns momentos, como vetores apontados para o mesmo sentido, assim somando para o mesmo resultado.
Por isso, se o combate à corrupção é cada vez mais visto com tanta desconfiança, e o que deveria ser um processo de aperfeiçoamento institucional para reduzir o grau de corrupção do Estado é percebido por tantos como pretexto para alijar da política um dos lados do hoje polarizado espectro ideológico, os fatos recentes criam a expectativa de um outro desfecho, pelo menos no plano criminal.
Corrupção no golpe
No momento em que finalmente Temer e Aécio são jogados no epicentro da crise e a Globo se pronuncia contra a permanência de Temer, escancara-se uma fratura num bloco de poder que antes parecia monolítico, e não se sabe o que resultará disso.
Se desde 2013 se articulou uma base social direitista antes anestesiada, se o resultado eleitoral de 2014 não foi aceito pelos derrotados e ensejou questionamentos à legitimidade do governo eleito, se a corrupção serviu como senha para reunir a coalização conservadora para a consumação do golpe, Temer ofereceu um programa para o tempo faltante de governo, que foi acolhido como projeto pela elite empresarial.
A ponte para o futuro, construída por um governo que não tinha compromisso com o voto, significaria a desconstrução dos direitos sociais da Constituição de 1988, o congelamento dos gastos sociais, reformas trabalhista e previdenciária, desestatizações. Era um projeto a ser cumprido no curto tempo de pouco mais de meia gestão.
Evidentemente, a aposta é de longo prazo e se busca um candidato que em 2018 possa derrotar a esquerda. De preferência, um dos antigos caciques, desde que sobreviva à descrença na política. Se não, algum salvador da pátria que não goste de política, como Dória ou Huck. Somente em último caso, Bolsonaro.
Mas 2018 é depois; por ora, está aí Temer com seu projeto e a Globo pressionando por sua renúncia, mas defendendo o mesmo projeto. E o projeto é este, de fazer as reformas liberalizantes nesse curto prazo de tempo. Em se seguindo a receita constitucional para o caso de vagar o cargo de presidente, quem seria eleito e sob que propósito? Se elegeria um governo de conciliação, que deixaria tudo em banho-maria e prepararia uma eleição justa para 2018, ou apenas seria posto no lugar um técnico que, sem o desgaste da corrupção, conseguisse aprovar esse programa que deu consistência ao golpe?
Corrupção e eleições
Quando vejo constitucionalistas respeitáveis defenderem a eleição indireta, sem se questionarem sobre as circunstâncias políticas em que ocorreriam, sem considerarem a profundidade da crise e a tentativa de fazer passar goela abaixo todas aquelas reformas, sem se darem conta de que tudo o que hoje acontece é mero desdobramento do golpe, e portanto carece de legitimidade, penso que se aprisionaram numa visão ideal do Direito, que não percebe o mundo à volta.
Se outros dizem que uma eleição hoje traz o risco Bolsonaro, concordo, mas acrescento que Bolsonaro é um risco também em 2018, e que hoje o maior risco é a consumação das reformas, sob a condução de um presidente que resulte do aprofundamento do golpe e com o voto favorável de um Congresso eleito em campanhas pagas pelos grandes corruptores do país e profundamente envolvido na corrupção que serviu de mote para o que aconteceu nesse período.
Evidentemente, as eleições diretas são apenas uma das alternativas postas, e somente ocorreriam num quadro de aprofundamento da crise política, que levasse a uma situação em que esses mesmos atores se vissem obrigados a alterarem a Constituição para convocarem o pleito. Sob esse aspecto, nada haveria nelas de antidemocrático.
Eleições indiretas negociadas de um presidente de conciliação nacional poderiam ser menos traumáticas, mas não seria excessiva ingenuidade defender eleições indiretas sem uma prévia garantia de que não sirvam para que um novo presidente com mais condições políticas faça o que Temer parece ser cada vez mais incapaz de fazer?
O fato é que, se antes a corrupção serviu como pretexto para impor um governo com projeto antipopular e se hoje o governo imposto, que tem problemas para aprovar o projeto, é atingido por denúncias de corrupção, o próximo lance parece ser sua substituição por um governo costurado nos altos círculos, imune a denúncias de corrupção e com força suficiente para cumprir a tarefa.

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