São só cinco páginas, onde Borges esbanja sua erudição e genialidade. Por isso, sinto-me quase um profanador, ao fazer uso de Os Teólogos.
Como sempre acontece com minhas leituras anárquicas, seu teor não demora a vazar pelos buracos da pobre memória; pouca coisa delas permanece escondida em suas profundezas, como um resíduo que esqueceu de escorrer pelo ralo, e só por alguma improvável sinapse se dá a conhecer novamente. Quando isso acontece, procuro a fonte para me certificar de que não estou enganado e, nesse caso, reviver a experiência, quase confirmando a narrativa de Borges sobre a concepção herética dos monótonos, que professava a crença no eterno retorno, causado pelo caráter circular da história.
Mas, se retornei a Os Teólogos, não foi pelos monótonos, foi por outro motivo, que já explicarei. São dois os teólogos, Aureliano e aquele que elegeu como rival, João de Panonia, que, sem se conhecerem, coincidem em suas posições na defesa da ortodoxia. Panonia está sempre um passo à frente, o que agasta Aureliano, que necessita muito superá-lo, não para lhe fazer mal, mas para curar-se do rancor que lhe infunde.
Por isso, ouvindo rumores de que João de Panonia prepara uma impugnação à abominável heresia dos monótonos, Aureliano se antecipa e dedica nove dias a sua própria refutação. Em vão, porque no décimo dia lhe é enviada cópia do trabalho do oponente.
Tempos depois, trata Aureliano da seita dos histriões, oportunidade em que finalmente supera Panonia, com a refutação de assertiva por este utilizada para impugnar a seita anterior, frase agora apontada como reveladora de sua própria adesão à nova heresia, o que ao cabo leva Panonia à fogueira.
Detenho-me nos histriões, porque foram eles que permaneceram em mim como borrão na memória, e os levo agora, ao sair do universo borgiano, aonde só retornei para redescobri-los. Esses heréticos construíram sua doutrina pervertendo a ideia, contida nos livros herméticos, de que o que existe embaixo é igual ao que existe em cima e o que existe em cima é igual ao que existe embaixo. Imaginaram que todo homem é dois homens e o verdadeiro está no céu. Mais que isso, sustentaram que nossos atos projetam um reflexo invertido do nosso eu celestial. Assim, se velamos o outro dorme, se fornicamos o outro é casto, se roubamos o outro é generoso. Com base nessa doutrina, muitos histriões defenderam que os justos deveriam cometer os atos mais infames, para tornarem mais puro nosso eu celestial.
Parto do pensamento desses hereges, cujos profetas arderam no fogo, e, à maneira de Dan Brown, imagino-os como uma seita que sobrevive secretamente desde então. Como tantas outras, tem a ambição missionária de converter mais e mais fiéis, e, para melhor disseminar seu projeto celestial, passa a adotar meios mundanos de sobrevivência e, na medida em que cresce, também de poder.
Dão coerência a seus postulados e, de uma pequena seita perseguida, constroem uma religião cada vez mais próspera, ainda que prospere secreta. Há que se reconhecer que os histriões nasceram vocacionados para o sucesso, porque, ao contrário de outras religiões, cujo fausto parece não combinar com as pregações de pobreza, amor e ascetismo de seus fundadores, sempre acreditaram que, para atingir a virtude no plano superior, era necessário praticar o pecado no plano terrestre. Como é muito mais fácil pecar do que permanecer íntegro, roubar do que ser generoso, também lhes foi mais fácil angariar fiéis e ajustar sua conduta à dogmática histriônica, construída ao longo de muitos séculos de sistematização.
Das várias correntes iniciais da seita primordial, a ortodoxia se construiu um torno da ideia de que somos todos parte de uma única divindade, de modo que a soma das nossas características individuais forma o reflexo invertido da grande virtude cósmica.
Por esse motivo, o mandamento fundamental, do qual derivam os demais, é: “Irmãos, sede todos egoístas; do egoísmo de cada um de vós resultará a caridade divina.” E, com esse postulado, emissários da boa nova foram enviados a todos os rincões do planeta, onde lançaram suas palavras em solo fértil e se multiplicaram mais que sementes em ano de boa colheita.
Em tempo mais recente, houve uma sutil, mas muito importante, alteração na dogmática histriônica, e ela partiu não só dos teólogos, tendo envolvido também fiéis de várias áreas do conhecimento, que ao longo dos séculos passaram a integrar tão sábia religião. Em um grande concílio, concordaram os doutos que, porque fomos criados à imagem e semelhança do criador (inversa, evidentemente), a revelação divina ocorre no momento da concepção, e que, para sua glória e suprema caridade, todas as criaturas nascem egoístas. Desse modo, já não é necessário pregar aos que receberam a revelação da vontade divina, bastando combater os infiéis que a deturpam, principalmente os pervertidos que negam a projeção inversa e buscam a realização do bem por meio da bondade, assim dedicando suas vidas a falsos ídolos.
Os histriões sempre se caracterizaram por sua firme defesa do livre arbítrio, que chamam de libertarianismo. Construíram sua dogmática no entendimento de que, derivando a virtude divina dos egoísmos privados, cada indivíduo deve exercer seus próprios atos egoístas, sem nenhum estímulo exterior, porque afetaria a perfeição divina.
Essa visão ortodoxa continua a ser utilizada nos ritos litúrgicos, que, como em qualquer religião, refletem uma certa sacralização do pensamento dos profetas fundadores, e é fundamental para o proselitismo missionário, porque expressa a doutrina na sua forma mais pura.
Alguns dos sacerdotes que abraçam a antiga tradição declamam, ocasionalmente, sermões com admoestações àqueles fiéis que, para potencializarem os efeitos do seu egoísmo, formam congregações de irmãos para se ajudarem reciprocamente ou mesmo buscarem em outros lugares favores que os beneficiem em seu egoísmo.
Esses seguidores pragmáticos do histrionismo não costumam debater sua conduta privada com os teólogos: não veem mal em preservar a doutrina ao mesmo tempo em que se adaptam às necessidades impostas por um mundo que se tornou mais complexo e no qual já não há lugar para românticos.
Nisso – penso eu – têm razão: bem sabemos que nenhuma religião sobrevive se não souber adaptar seus ensinamentos às necessidades de uma sociedade cambiante. Ademais, é impossível a uma religião que cresce muito e se torna mesmo dominante manter-se coesa, e é natural o surgimento de clivagens.
Uma corrente teológica de muito sucesso, secretamente estimulada na hierarquia histriônica, porque atrai fiéis em busca de efeitos mais imediatos, é a que sustenta a presença da divindade no próprio mundo de baixo, nele antecipando o paraíso celestial. Constituída de pastores jovens e dinâmicos, prega que, se soubermos ser egoístas, bem antes do fim dos tempos todas as nações se regozijarão e nelas haverá fartura e abundância para o seu povo.
Mais dificuldade têm os histriônicos, cuja mística lembra as imolações dos profetas fundadores, quando surgem insinuações sobre relações promíscuas com o poder terreno, normalmente visto como um intruso, porque interfere no livre exercício egoístico e busca, de modo sacrílego, usurpar a distribuição da caridade e da justiça, que só podem ser fruto dos desígnios divinos.
Dele costumam dizer: “Tentes fazer o bem e farás o mal; faças o mal para que o bem se realize.”
Trata-se de questão complexa, e os teólogos contemporâneos preferem não incluí-la em seus tratados. A mera alusão à sua existência causa desconforto, mas a questão tem sido vista como um mal necessário.
Nesse ponto, abrem-se parênteses: os filósofos e linguistas histriões têm realizado infindáveis congressos dedicados a debates semânticos sobre a palavra “mal”, dado o fato de que, por vezes, em razão do dogma do reflexo invertido, mal pode parecer bem e bem pode parecer mal. Por isso, muitos deles sustentam que o mal necessário é, na verdade, um bem necessário.
Deixemos de lado essa questiúncula doutrinária, e sejamos objetivos nas justificativas desses histriões desviantes: segundo eles, mesmo correto o dogma sagrado (e quem se atreveria a dizer incorreto o sagrado?) que vê cada indivíduo como parte da divindade, destinado a exercer sozinho todo o seu egoísmo, os caminhos do mundo são muitas vezes íngremes e tortuosos, e a função do poder terreno é a de deixar plano o íngreme e reto o tortuoso, para que melhor possamos pecar, com nosso egoísmo, e com isso atingir a felicidade de todos.
Por isso, sustentam nos corredores e nos cofibreiques dos concílios – o tema não é incluído no debate oficial – que, embora seja uma heresia o poder terreno arvorar-se em divindade alternativa para fazer o bem, o que evidentemente não funciona, ele tem a obrigação de apoiar quem de modo tão piedoso se dedica a fazer o mal, sabidamente o único caminho para que o bem se realize.
Com essa genuína preocupação – e aqui com o apoio da quase unanimidade dos clérigos – se dedicam a assegurar que as instâncias do poder terreno sejam ocupadas por pessoas que compartilham da fé histriônica, e novamente semeiam em solo fértil, sabendo que tudo lhes será devolvido em dobro, para a glória da caridade divina, que se torna infinita ao refletir inversamente o uso egoístico do poder.
Também por isso, e embora sejam profundamente democráticos, quase inflexíveis na defesa doutrinária de um poder terreno que derive da síntese dos desejos individuais, os histriões não aceitam que ele seja entregue a falsos profetas, que audaciosamente se dediquem a competir com sua divindade, com atos temerários de caridade e igualdade, cujo resultado inevitavelmente será catastrófico.
Nesse caso – e somente nesse – relativizam suas convicções democráticas, tudo em homenagem à felicidade geral, que um dia brotará de suas ações egoístas.
É esta a minha breve descrição dos histriões, que, da seita herética e perseguida descrita por Borges, chegaram aos nossos tempos como uma próspera religião, embora não se tenha dedicado à construção de templos e continue atuando reservadamente.
Peço desculpas ao leitor por não conseguir descrevê-los com mais precisão: isso se deve mais a minhas dificuldades de cognição e estilo do que a eventuais e improváveis inconsistências do histrionismo.
Também não posso contar o fim da história, seja porque, como qualquer observador poderá ver, ela ainda não acabou, seja porque os histriões pertencem ao mundo de Borges, e minha ousadia já ultrapassou os limites.
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