Meu primeiro contato com Brecht foi quando terminava o Segundo Grau, em São Sebastião do Caí. Acho que capa amarela, tradução de Fernando Peixoto. Foi uma época de grandes descobertas literárias: Garcia Marquez, Cortázar, Vargas Llosa, Guimarães Rosa. E obviamente Brecht. Tudo retirado com a Lígia, na biblioteca da Escola Normal, aquisições do Zé Clóvis.
Li aqueles poemas, gostei mais de uns, menos de outros, Aos que vierem depois de nós me apaixonou.
Era um poema heroico, escrito nos tempos de nazismo, e caía bem para meus 18 anos, quando sentia agirem sobre mim todos os modos de repressão, reais e imaginários (e havia um muito real: a ditadura militar).
Pensar-se vivendo numa ditadura opressora (há pouco, Geisel havia fechado o Congresso e a polícia assassinado três dirigentes do PCdoB, no que ficou conhecido como a Chacina da Lapa), quando se é jovem cheio de ideais, leva a pensamentos épicos e exige épicas inspirações. Para isso, nada como esse primeiro Brecht, que dizia também da violência das margens.
A ditadura passou, os anos passaram, e a lembrança do poema se tornou menos urgente; passou a significar mais uma homenagem aos heróis tombados e às generosas utopias que não resistiram ao pragmatismo da política.
Perguntas de um trabalhador que lê, desse mesmo livro amarelo do Fernando Peixoto, era um poema menos cotado para mim. Não tinha a mesma beleza lírica, era doutrinário, comunista, mas nunca esqueci. Penso no trabalhador que lê sempre que vejo as bobagens que são ditas de modo totalmente irrefletido, os absurdos que são escritos sem corar na internet. Lembro um pouco porque o poema pergunta quem construiu a Tebas de sete portas, e lembro mais porque a pergunta é feita pelo trabalhador que lê – e pensa. Como vejo hoje afirmações – não perguntas – feitas por quem não lê e não pensa!
As leituras de que falo aconteceram pouco antes de vir para Porto Alegre. Aqui conheci um novo mundo e novas pessoas. Uma delas me apresentou a beleza inominável da Cruzada de Crianças. O João do Livro devia pesar uns 40 quilos. Quem não o conhecesse, o imaginaria bêbado naquele andar trôpego com que carregava suas enormes sacolas de lona repletas de livros, mais pesadas que ele próprio. E, se ouvisse sua fala de língua enrolada, teria certeza disso. Não havia comício, passeata ou reunião em que não estivesse, ele e seus livros. O João tinha um apreço muito especial pelo Raul Pont, mas não o suficiente para ser demovido de acompanhar o Brizola, quando retornou do exílio e fundou o PDT.
Se lembro da história, João havia sido mineiro do carvão, líder sindical, inúmeras vezes preso pela ditadura, e agora vivia de vender livros para a esquerda. Ele e a Maria, sua companheira, grande, forte, vesga, com o triplo do seu peso, alma tão generosa quanto a dele. A Maria eu vi pela última vez, faz bem mais de vinte anos, vendendo toalhinhas de crochê na Volta do Guerino. Perguntei do João, não lembro o que ela respondeu. Devem estar mortos, é o que calculo pela sua idade de então.
Mas o que quero dizer do João – ele, que, cada vez que me via, apresentava novos livros marxistas – é que certa feita me ofereceu um livro com poemas do Brecht, sem nome de editora, sem nome de tradutor. Ele mesmo tinha mandado imprimir.
E no livro, a revelação definitiva de Brecht. Cruzada de crianças é a expressão da tolerância e da solidariedade num mundo em convulsão. Lembro de ter datilografado o poema numa IBM, bem caprichado, porque ia mandar de presente de quinze anos para minha irmã Cláudia.
Não mandei. Anos depois ainda achei os papéis, já amarelados. Não lembro se voltei a guardá-los. Talvez um dia se apresentem de novo à minha vista.
Mas o poema nunca deixou de me acompanhar. E de emocionar. Foi a emoção que senti de novo quando meu amigo Naor Nemmen me mandou, num recorte recente do Estadão. Naqueles dias estava envolvido com minhas historinhas, e nada escrevi, mas o faço agora, porque não posso deixar de lembrar desse Brecht que me foi apresentado pelo João do Livro.
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Procurei os poemas na internet. O primeiro é com a mesma tradução do Fernando Peixoto que eu conhecia; do segundo e terceiro não sei quem foi o tradutor. Da Cruzada de crianças, achei muitas traduções, nenhuma delas a do livro do João. Escolhi a que melhor fluía, embora não observe até o fim as estrofes de quatro versos. Coloco nos títulos os linques para o lugar de onde os tirei.
É verdade, eu vivo num tempo sombrio!
Uma palavra sem malícia é sinal de tolice.
Uma testa sem rugas é sinal de indiferença.
Aquele que ri
Ainda não recebeu a terrível notícia.
Que tempos são esses, quando
Falar sobre árvores é quase um crime
Pois significa silenciar sobre tanta injustiça?
Aquele que atravessa a rua tranqüilo
Já está inacessível aos amigos
Que passam necessidades?
É verdade: eu ainda ganho bastante para viver.
Mas acreditem: é por acaso.
Nada do que faço
Me dá o direito de comer quando tenho fome.
Estou sendo poupado por acaso.
(Se a minha sorte me deixa, estou perdido.)
Me dizem: come e bebe!
Fica feliz por teres o que tens!
Mas como é que eu posso comer e beber
Se a comida que como, tiro de quem tem fome?
Se a água que bebo, faz falta a quem tem sede?
Mas mesmo assim, eu como e bebo.
Eu queria ser um sábio.
Nos livros antigos está escrito o que é a sabedoria:
Se manter afastado dos conflitos do mundo
E passar sem medo
O curto tempo que se tem para viver;
Seguir seu caminho sem violência;
Pagar o mal com o bem;
Não satisfazer os desejos, mas esquecê-los.
Sabedoria é isso!
Mas eu não consigo agir assim!
É verdade, eu vivo num tempo sombrio!
Eu vim para a cidade no tempo da desordem
Quando a fome reinava.
Eu vim para o convívio dos homens no tempo da revolta
E me revoltei ao lado deles.
Assim se passou o tempo
Que me foi dado viver sobre a Terra.
Eu comi o meu pão no meio das batalhas.
Para dormir, eu me deitei entre os assassinos.
Fiz amor sem muita atenção
E não tive paciência com a Natureza.
Assim se passou o tempo
Que me foi dado dado viver sobre a Terra.
No meu tempo as ruas conduziam ao lodo,
E as palavras me denunciavam ao carrasco.
Eu podia muito pouco, mas o poder dos patrões
Era mais seguro sem mim, espero.
Assim se passou o tempo
Que me foi dado dado viver sobre a Terra.
As forças eram limitadas.
O objetivo permanecia a uma longa distância.
Era nitidamente visível, mas para mim
Quase fora do alcance.
Assim se passou o tempo
Que me foi dado dado viver sobre a Terra.
Vocês, que vão emergir
Das ondas em que nos afogamos.
Pensem, quando falarem das nossas fraquezas,
Dos tempos sombrios de que tiveram a sorte de escapar.
Nós existíamos através das lutas de classes,
Mudando mais de país do que de sapatos,
Desesperados quando só havia injustiça
E não havia revolta.
Nós sabemos:
O ódio contra a baixeza
Também endurece o rosto;
A cólera contra a injustiça
Também faz a voz ficar rouca.
Infelizmente nós,
Que queríamos preparar o terreno para a amizade,
Não pudemos ser, nós mesmos, bons amigos.
Mas vocês, quando chegar o tempo
Em que o Homem seja amigo do Homem,
Pensem em nós
Com simpatia.
PERGUNTAS DE UM TRABALHADOR QUE LÊ
Quem construiu a Tebas de sete portas?
Nos livros estão nomes de reis:
Arrastaram eles os blocos de pedra?
E a Babilônia várias vezes destruída
Quem a reconstruiu tantas vezes?
Em que casas da Lima dourada moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha da China ficou pronta?
A grande Roma está cheia de arcos do triunfo:
Quem os ergueu?
Sobre quem triunfaram os Césares?
A decantada Bizâncio
Tinha somente palácios para os seus habitantes?
Mesmo na lendária Atlântida
Os que se afogavam
gritaram por seus escravos
Na noite em que o mar a tragou?
O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Sozinho?
César bateu os gauleses.
Não levava sequer um cozinheiro?
Filipe da Espanha chorou,
quando sua Armada naufragou.
Ninguém mais chorou?
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.
Quem venceu além dele?
Cada página uma vitória.
Quem cozinhava o banquete?
A cada dez anos um grande Homem.
Quem pagava a conta?
Tantas histórias.
Tantas questões.
Na Polônia, no ano de Trinta e Nove
Houve uma luta cruel
Que transformou cidades em cinzas
Em cor de chumbo o azul do céu.
A mulher perdeu o marido
A irmã despediu-se do irmão
Os pais deram falta dos filhos
Em meio ao fogo e à destruição
Da Polônia nada mais veio
Nem carta nem relatório.
Mas nos países vizinhos
Corre uma estranha estória.
A neve caía quando contaram
Numa cidade do leste europeu
Sobre uma cruzada de crianças
Que na Polônia aconteceu.
Por lá vagavam meninos
Famintos pelas calçadas
E a eles juntavam-se outros
Vindos de aldeias arrasadas.
Queriam escapar à chacina
A todo aquele pesadelo
E alcançar um dia um lugar
Onde a vida não fosse um flagelo.
E logo um pequeno líder
Entre eles aparecia.
Para ele o grande problema
Era o caminho, que não sabia.
Uma garota levava um bebê
De dois ou três anos, não mais
Tinha o carinho de uma mãe
Faltava uma terra onde houvesse paz.
Um pequeno judeu num bonito
Casaco com gola de veludo
Habituado a comer pão do mais branco
Marchava junto, agüentando tudo.
E um magro, de cabelos louros
Ficava pra trás, não dava na vista
Carregava uma culpa bem grande:
Vinha de uma embaixada nazista.
Havia também um cachorro
Levado para servir de jantar
Que passou a ser mais uma boca:
Não tinham coragem de matar.
E uma escola chegaram a criar
A professora sendo a mais crescida
No flanco de um tanque arruinado
Um aluno escreveu a palavra vida.
Houve também um romance
Ela com doze, ele quinze.
Num sítio abandonado
Eles se amam não fingem.
Mas o amor não podia ser.
Inverno não é tempo de amora.
Como podem os brotos florescer
Com a neve caindo lá fora?
Houve também, um enterro
De um garoto bem trajado.
Por alemães e poloneses
Seu caixão foi carregado.
Protestantes, nazistas, católicos
Juntos o entregaram à terra
E um pequeno comunista falou
Rezando pelo fim da guerra.
Ele tinham fé e esperança
Só não tinham o que pôr na barriga
E ninguém censure, se roubaram
De quem não lhes dava abrigo.
E ninguém censure o pobre homem
Que não os convidou para a mesa.
Para alimentar cinqüenta é preciso
Mais que coração, riqueza.
Eles buscavam rumar para o sul
Onde o sol brilha duradouro
E fica no meio do céu
Como uma bola de ouro.
Acharam um dia um soldado
Ferido no bosque, sozinho.
Dele cuidaram uma semana
Dele aprenderam o caminho.
Vão para Bilgoray, disse ele.
A febre o fazia delirar
Deixou-os no oitavo dia
Também ele foi preciso enterrar.
E viram placas nas estradas
Embora de neve cobertas
Mas estavam todas trocadas
As direções não eram certas.
Não era por simples brincadeira
Que os homens do exército as trocavam.
Mas os meninos nada sabiam
E Bilgoray não encontravam.
Pararam em volta do líder
Que sondava o horizonte
E apontando com o dedo falou:
Deve ser além do monte.
Uma noite viram fogos
Luzindo ao pé de um rochedo
E viram tanques passando:
Afastaram-se com medo.
Ao deparar com uma cidade
Fizeram uma grande curva.
Até que ficasse para trás
Andaram somente na noite turva.
Onde fora o sul da Polônia
Sob uma tempestade forte
Foram vistos pela última vez
Abandonados à própria sorte.
Se fecho os olhos um instante
Já os tenho na imagem
De uma devastação a outra
Errando pela paisagem.
Acima deles, nas nuvens
Vejo outros cortejos, monstruosos!
Arrastando-se no vento frio
Pequenos seres desterrados, andrajosos.
Buscando um país de paz
Sem trovão, sem chuva de fogo
Diferente do que ficara pra trás
Nele esperam chegar dentro em pouco.
Essas hostes não param de crescer
E me parecem mudar, na luz do poente:
Outros rostos creio reconhecer
Franceses, espanhóis, orientais: gente.
Na Polônia, naquele ano
Um cão foi encontrado
Que no pescoço magro trazia
Um pedaço de couro amarrado.
Nele se lia: Socorro, por favor!
Estamos perdidos, sem esperanças.
O cachorro mostrará o caminho
Somos cinqüenta e cinco crianças.
Se não puderem vir não lhes façam mal
não o matem, pois só ele sabe o local.
Camponeses leram a mensagem.
O escrito não tinha nome.
Desde então dois anos passaram
O cachorro morreu de fome.
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