A necessidade da reforma política

Há tempo pensava em escrever sobre reforma política, mas não achei o tom nem consegui imaginar um texto razoavelmente completo que não me exigisse mais que a hora e meia das minhas mensagens bissextas.


Acho que descobri a saída ao ler a entrevista de Wanderley Guilherme dos Santos ao Jornal GGN, com título Reforma política não resolve corrupção. A entrevista é excelente, e a recomendo, em especial por sua visão crítica em relação à defesa incondicional que alguns setores de esquerda fazem de acusados de corrupção, como se tudo não passasse de armação.

Sobre esse ponto, há uma frase que sintetiza o pensamento do entrevistado: “o banquete de escândalos servidos diariamente à direita não justifica solidariedade ou hesitação da esquerda em relação a bandidos.” Acrescento eu: não sabem os que, baseados numa fé cega, defendem incondicionalmente os acusados de conduta desviante o mal que fazem à própria esquerda.

Mas não é esse o ponto; pretendo falar de reforma política. Talvez Wanderley Guilherme dos Santos esteja correto quando diz que a reforma política não é a coisa mais importante a ser feita e certamente está certo quando diz que não será ela que acabará com a corrupção, mas considero equivocado o seu quase desdém em relação à ideia.

Aliás, cumpre registrar que, muito mais que o PT, por ele criticado, um conjunto de entidades da sociedade civil, agregada em torno do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, tem se empenhado em propor novas regras para partidos e eleições, de modo que não se trata apenas – nem principalmente – da proposta de um partido.

Mas, ao ler a entrevista, lembrei de uma das dificuldades que via para escrever sobre o assunto: no fundamental, as normas que orientam partidos e eleições têm se mantido ao longo dos anos, e por isso parece ilógico que repentinamente se conclua serem disfuncionais. Explicitando ainda mais: o sistema sempre foi ruim, mas nunca foi responsável por crises políticas ou impasses na governabilidade.

A propósito, não deixa de ser instigante a avaliação de Wanderley Guilherme dos Santos de que, pela primeira vez desde 1964, a esquerda deixou de influenciar o centro, perdendo a liderança para a direita – e a pauta do Congresso (redução da maioridade penal, terceirização das atividades-fim, desmonte do SUS) confirma isso –, mas a questão não se explica somente pela dificuldade de liderança, talvez exaurimento de projeto, de uma esquerda no poder: está muito na composição desse Congresso, no modo gradual e firme como vem, eleição após eleição, se deslocando para posições mais conservadoras. O certo é que, cada vez mais, há um crescimento numérico da direita e um encolhimento da esquerda.

E isso não se dá só por um desgaste da esquerda, ou porque há um eleitorado evangélico que vota em pastores, porque o discurso dos Bolsonaros encanta uma classe média reacionária ou porque a influência dos grandes proprietários rurais lhes permite obter uma representação política mais expressiva que seu peso social. Há, é certo, alguns aspectos em que parcela muito significativa do eleitorado sempre se alinhou à direita, e continuará a fazê-lo; exemplo disso são os grandes índices de adesão às propostas punitivas, como pena de morte ou redução da maioridade penal.

Mas há também – e por isso a necessidade de reforma política – um conjunto de regras partidário-eleitorais, potencializada nos últimos pleitos, que favorece esse deslocamento ideológico. Daí chego ao ponto: se as regras pouco mudaram, por que culpar agora o sistema?

Evidentemente, a reforma política passa por uma série de medidas, mas aponto aqui duas questões que têm, mais do que a mera incapacidade de liderança política por parte da esquerda, combinadamente atuado para promover uma alteração do perfil ideológico do Congresso: o financiamento empresarial das campanhas e a facilidade de proliferação de siglas.

O financiamento empresarial de campanhas sempre existiu, e é um desses pontos em que a lei não mudou, mas mudaram os hábitos e costumes: de eleição para eleição as arrecadações são maiores e em 2014 o custo médio das campanhas dos deputados federais eleitos atingiu uma média nacional de aproximadamente R$ 2 milhões por deputado. Somente campanhas ricas obtém sucesso e uma campanha rica supõe que o candidato seja rico ou que haja financiamento por grandes empresas ou as duas coisas (sugiro a leitura de matéria da Revista Época sobre as eleições de 2010, com gráficos por estado e por partido). Em campanhas que dependem de dinheiro, acaba por se eleger só quem tem dinheiro ou o obtém de doadores ricos. Registre-se: poucas das maiores doadoras não estão envolvidas em algum dos escândalos recentes, seja no que se refere a licitações fraudulentas, seja sonegação fiscal.

Por outro lado, parece óbvio que o deputado que recebe dezenas ou centenas de milhares de reais de uma empresa se sente comprometido com os interesses dessa empresa, em razão da dívida contraída e também da necessidade de obter novas doações nas próximas eleições.

E o problema maior não são as dívidas individuais para empresas individuais; o problema maior ocorre quando os interesses coletivos do empresariado se apresentam diante de um coletivo de deputados que teve sua campanha fundamentalmente paga por grandes empresas. Tome-se como exemplo o Projeto de Lei que autoriza a terceirização de atividades-fim, cuja aprovação resultará numa grave precarização da situação de milhões de empregados: quem pode assegurar ao cidadão que o voto dos deputados não está de algum modo condicionado pela pressão daqueles que lhes financiaram as campanhas?

Essa situação se combina à segunda que mencionei. Desde que me conheço, sempre ouvi que no Brasil não existem partidos autênticos, com ideários definidos, mas somente ajuntamentos mais ou menos difusos. Pois digo agora que tínhamos partidos e não sabíamos.

A facilidade com que se cria um novo partido no Brasil hoje e a facilidade de os deputados migrarem para esses partidos levou a uma tal dispersão, que as eleições de 2014 permitiram a representação de 28 partidos na Câmara dos Deputados, dos quais é necessária a soma dos cinco maiores para obter maioria absoluta e dos sete maiores para a aprovação de uma emenda constitucional.

Essa dispersão é ainda potencializada por uma terceira característica, que desde sempre existiu, mas nesse quadro se mostra mais deletéria: o voto uninominal, não partidário: embora o número de eleitos por partido ou coligação se dê pela quantidade de votos obtidos pela legenda, os votos são dados individualmente e se destinam majoritariamente a quem fez as campanhas mais caras.

Tudo isso compõe o quadro em que cada vez menos existem partidos identificados com ideários, de modo que se forma uma geleia geral inorgânica, em que os parlamentares não se guiam por programas partidários, mas pelos ajustes costurados naquela multidão anárquica de deputados. Aliás, é nesse ambiente, propício à venalidade, que se forjam as lideranças do Congresso, cuja influência se impõe por critérios outros e bem menos nobres que as afinidades políticas.

Assim, enfraquecidos os partidos, que não têm força suficiente para submeterem seus deputados a deliberações baseadas em programas, a pauta posta é a dos interesses dessa massa informe de deputados eleitos por campanhas caras, que, ou por serem ricos ou por terem sido financiados por empresas que depois cobram a fatura, dão ao Congresso um perfil de alinhamento com pautas empresariais.

Trata-se de um quadro real, que transcende os movimentos políticos e a dificuldade encontrada pela esquerda para liderar o centro; as regras partidárias e eleitorais tendem a, enfraquecendo os partidos e facilitando a eleição de candidaturas caras, empurrar para a direita o ponto de equilíbrio ideológico do Congresso. Em linguagem estatística, a mediana se moveu para a direita, e isso não decorreu unicamente de se viver um momento histórico em que a esquerda se encontra fragilizada.

Se é possível uma reforma política que cause uma inflexão nessa tendência é outra história. Talvez seja necessária uma crise muito maior que a de agora para que isso ocorra, mesmo porque, em condições normais, não é de se esperar que o Congresso que aí está aceite mudar as regras pelas quais ele se elege.


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