A infância é a idade mítica, e nela tudo se conserva. Esta semana, minha lembrança retornou às histórias bíblicas de então. Não lembro bem se as recolhi das leituras do sótão ou dos primeiros anos escolares ou mesmo da catequese, mas há muitas. Também não sei por que as do Antigo Testamento aparecem com mais facilidade que as do Novo Testamento: foi porque estavam mais disponíveis ou porque guerras e intrigas eram mais interessantes que o amor, e por isso ocuparam lugar privilegiado na minha memória?
E nelas vejo Deus aparecer diretamente a Abraão, Moisés e outros menos cotados, sempre um velho de barba comprida, parecido com o do teto da Capela Sistina.
Foram épocas de confusão teológica nessa mente infantil, e eu não conseguia entender como alguém tão infinitamente bom podia usar seu poder para jogar os pecadores no fogo eterno. Pior foi quando, não sei por que fonte nem de que forma, chegou para mim a doutrina da predestinação, e fiquei horrorizado ao pensar que, antes mesmo de eu nascer, Deus já havia decidido se eu seria bom ou mau, e ao final acolhido no céu ou enviado para todo o sempre ao inferno. Nada, portanto, dependeria de mim, e tudo de seus divinos caprichos, que, esclareça-se, eram imperscrutáveis e, por definição, expressão de infinita bondade.
Essas minhas dúvidas teológicas eram alimentadas pelos relatos bíblicos. Quando Deus ordenava ou autorizava massacres, minha confusão era total: como assim, autorizar Moisés a matar os adoradores do bezerro de ouro, como destruir Sodoma e Gomorra, matando todos os seus habitantes? Havia sempre uma punição fatal a quem não dirigisse sua adoração unicamente a ele próprio. E o povo escolhido levava suas vantagens: ao retornar do exílio egípcio para a terra prometida, a cidade de Jericó foi destruída e seus habitantes pagaram com a vida pelo fato de terem chegado antes.
Não era fácil entender isso, e talvez fosse mesmo um sacrilégio querer entender Deus. E era sempre assim nas histórias: eu não conseguia, por exemplo, compreender como pudesse haver infinita bondade em exigir, como prova de amor de Abraão, que sacrificasse seu primogênito. Mesmo a interrupção do ato, quando o mortificado Abraão levantava a faca para matar Isaac, não me parecia desculpar a exigência anterior.
Isaac teve uma longa vida virtuosa após passar por esse trauma infantil, e, já no leito de morte, foi enganado por sua própria mulher, Rebeca, que, após duvidosa transação em torno de um prato de guizado, ajudou Jacó a se passar por Esaú, mais velho e preferido do pai, para obter a bênção da primogenitura.
Se para mim isso são histórias que ficaram da infância, ainda hoje muitos as veem como história factual, que não só dá suporte ao criacionismo como também sustenta o mito fundador do Estado de Israel. A descendência abençoada a partir do engano a Isaac foi o povo escolhido que, voltando de seu exílio, tomou para si a terra prometida, matando quem lá vivia.
Mas há outra evocação histórica, também presente na minha infância, que dá corpo ao imaginário israelense: a luta de Davi contra Golias, o gigante filisteu derrotado com uma funda. Ali está a narrativa de um povo pequeno, cercado de inimigos mais fortes, que consegue derrotar, graças à sua coragem e virtude.
Essas minhas leituras bíblicas coincidem no tempo com a Guerra dos Seis Dias, narrada pelo Flávio Alcaraz Gomes pela Rádio Guaíba. Lembro da minha simpatia inicial pelo Egito, porque – sempre com minhas referências bíblicas – para lá tinham fugido José e Maria, ao saberem que Herodes planejava matar os recém-nascidos. Foi uma simpatia temporária, logo desfeita por um irmão mais velho, que, entre outras coisas, me mostrou no mapa múndi aquele pequeno país, cercado de vários inimigos gigantes.
Israel, ressurgido na terra prometida e formado pelos sobreviventes do holocausto, e que carregava na bandeira a estrela daquele Davi, estava predestinado a novamente derrotar Golias.
Os dois mitos fundadores sempre coexistiram, e a arrogância com que mais e mais Israel estreita o território dos palestinos caminha par e passo com o discurso de vítima do antissemitismo e da incompreensão do mundo. No discurso de autojustificação, Israel é, e sempre será, o Davi que enfrenta Golias.
Não lembrei imediatamente das minhas leituras bíblicas quando li, esta semana, a notícia de mais algumas dezenas de palestinos mortos, mas, quando vi a foto, fui imediatamente remetido à história de Davi.
Só que – ironia da História – quem empunha a funda é Fadi Abu Salah, o palestino de quem, segundo a legenda, Israel tirou primeiro a terra, depois as pernas e agora a vida.
Dos dois mitos fundadores, sobrevive só um, o da implacável espada com que Deus armou seu povo escolhido. O de Davi não, este mudou de lado, e é a guerra que Israel já perdeu.
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