Cena 1: Verônica Bolina é travesti. Domingo, dia 12, foi presa, após briga com uma vizinha. Algumas notícias mencionam tentativa de homicídio. Informam também que ela resistiu à prisão. Presa, foi posta na mesma cela em que estavam presos do sexo masculino. Novas informações dizem que ela causou perturbações e por isso um carcereiro decidiu transferi-la para outra cela. Nesse momento, ela teria mordido uma orelha do agente, da qual arrancou um pedaço.
Cena 2: Fotos de Verônica passaram a circular na internet. Numa delas, está algemada nas mãos e nas pernas, cabelo quase raspado, rosto desfigurado e seios à mostra. Em outra, deitada de bruços, também algemada às costas, com nádegas à mostra pela calça rasgada, observada por um agente.
Cena 3: Circula um áudio de quatro minutos; no primeiro minuto, Verônica diz que não foi torturada e justifica toda a ação, afirmando que os policiais apenas fizeram seu serviço; os três minutos restantes são ocupados pela Coordenadora de Políticas para a Diversidade Sexual do Estado de São Paulo, Heloísa Alves, autora da gravação, gentilmente autorizada pelo Delegado. Segundo a Coordenadora, que, não se identificou para a presa, para que suas declarações fossem mais verazes, está tudo esclarecido e não houve tortura.
Cena 4: a Defensoria Pública do Estado de São Paulo denuncia que a gravação tomada pela representante do Governo ocorreu na presença do delegado e carcereiros e que as próprias entrevistas com as defensoras públicas são sempre acompanhadas, não tendo sido permitidas entrevistas reservadas.
Dado esse relato mais ou menos objetivo (para quem não percebeu, esclareço que usei de ironia no gentilmente), passo a algumas opiniões.
1) São fortes os indícios de que Verônica foi torturada. A fotografia que mostra seu rosto desfigurado são um indicativo disso. Não se esqueça que os policiais eram muitos e sua formação profissional certamente envolve o aprendizado de técnicas de imobilização. É inverossímil que, para dominá-la, tenha sido necessário golpeá-la de tal maneira no rosto.
2) Tudo indica que Verônica foi submetida a uma situação degradante, ao ser retratada sem cabelos (diz a polícia que seu cabelo é curto assim e ela usa peruca, mas isso não altera a crítica), com seios e nádegas à mostra e rosto desfigurado. A exposição pública de sua imagem nessas condições representa uma nova agressão, uma humilhação que a desumaniza e a degrada pela exibição de sua sexualidade.
3) A negativa de tortura e a justificação por Verônica da violência que sofreu são uma das coisas mais vis e patéticas que já vi (aliás, não vi, porque só há áudio – imagens de um rosto desfigurado não ajudariam na tese): foram feitas por uma pessoa ainda sob o impacto da agressão (com dificuldade na dicção), na presença de policiais e para uma autoridade que não se identifica, e sem a assistência de defensor.
Tudo isso poderia ter sido bem diferente se lhe tivesse sido assegurada a entrevista reservada com defensor e a pronta apresentação a um juiz, como determinado por Convenção Internacional ratificada pelo Brasil em em 1992.
Mas não, a audiência de custódia foi terceirizada, e a Coordenadora de Políticas para a Diversidade Sexual do Estado de São Paulo garante que está tudo certo.
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Sobre audiência de custódia, escrevi Audiência de custódia e violência policial.
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